Estimado Dr. Kramer,
Inicialmente, por curiosidade, depois por inequívoco interesse, li o estimulante ensaio “Can we believe?”. A fundamentação conceitual e teórica proposta é desafiadora e fascinante. A leitura trouxe-me à consideração lembranças dos dois anos em que morei em um país islâmico no Oriente Médio. Exponho, com a certeza de que deixo a esfera estratosférica a que o denso texto remete o leitor para rastejar nas sendas da realidade palpável, simples — assumindo os riscos de me enfurnar no que é simplista e simplório.
Ao receber a notícia da nomeação para a missão, no Irã, o território correspondente a uma boa parcela da antiga Pérsia, conheci um iraniano que morava na praia do Flamengo. Tive uma meia dúzia de contatos com ele. Achei que poderia aprender farsi, o persa moderno. Depois das tentativas iniciais, desisti por achar que — além do inglês, o idioma requerido — poderia utilizar melhor o tempo para completar a possibilidade de comunicação em francês. O contato surgiu porque ele ministrou algumas aulas no IME, onde eu tinha muitos amigos. Esse iraniano foi professor de arquitetura na Universidade de Teerã. Ele fez doutorado na Universidade de Roma e se caracterizava como um intelectual respeitável — no doutorado, teve aula com o Umberto Ecco, se não me engano em Filosofia do Direito ou Ética do Direito. Seu irmão era Vice-Ministro da Energia do Xá Reza Pahlevi. Quando o Khomeini tomou o poder em 1979, os três ou quatro irmãos abandonaram o país e se dividiram entre os Estados Unidos e Brasil. Em 2000, para encontrar os filhos, a mãe tinha que ir para a Turquia, pois se eles entrassem no Irã seriam presos. Então, entre os islâmicos, a generosidade é inequívoca, às vezes, interagindo com a ausência de lógica.
Meu motorista em Teerã era bahai, uma minoria perseguida naquele país. A secretária era filha de um diplomata iraniano que em 1979 era embaixador em Buenos Aires. Com a revolução islâmica, a família, que tinha vários funcionários públicos, foi reduzida a trapos. Meus antecessores na Embaixada do Brasil disseram que, por serem oponentes do regime vigente, os dois servidores eram confiáveis. Durante o tempo em que lá estive, viajei muito. Fui a Susa, Passárgada, Persépolis, margem do Tigre e Eufrates, fronteira com a Turquia e fronteira com a Armênia e Azerbaijão. Ressalto que fiz questão de ir a Passárgada, pois queria conhecer a possibilidade da beleza do impossível que, em outro contexto, relatou Bandeira. Nas viagens de carro ou aérea, eu me valia da certeza de que estava sendo seguido 24 horas por dia para garantir a segurança em locais conflituosos; porém eu nunca via os meus seguidores. Certa vez, em meu escritório, resolvi dizer, somente para a secretária, que por ser cristão iria a Jerusalém. Para os iranianos, Israel não existe; mas caso houvesse equívoco e existisse, precisaria ser eliminado. Nos dias seguintes à conversa com a servidora, passei a ser seguido de forma completamente ostensiva por um casal. O recado foi cristalino: se cumprisse meu intento de ir a Israel, seria expulso imediatamente. Os colegas francês e turco foram expurgados — o primeiro fotografou um prédio público; o segundo tentou comprar informação de um cidadão local. O francês deixou para trás um filho com três dias de vida — teve que sair em 24 horas. Como eu estava em face de conclusão da jornada, perdi o jantar de despedida, normalmente magnífico, que ele tinha me oferecido. Claro, a secretária e o motorista não poderiam ser confiáveis: o regime usava a ameaça à família para que eles relatassem tudo o que se passava com o adido militar e com os diplomatas. Individualmente, os islâmicos são muito elegantes, mas institucionalmente, são implacáveis.
Ao chegar em Teerã, aluguei a casa de um médico, professor da Universidade de Teerã. Fizemos amizade. Ele me relatou que um colega, também professor — com doutorado em Stanford, em energia das estrelas — era considerado um espécie de Einstein regional e fazia parte do programa nuclear iraniano. Por ocasião da guerra com o Iraque, houve um período em que o Irã estava em enormes dificuldades (foram mais de meio milhão de soldados mortos). O que fez o cientista? Organizou um batalhão de civis, sem treinamento e sem equipamentos, e foi para a guerra. Bem, ele e todos os seus comandados foram simplesmente dizimados. Ora, esse caboclo deveria permanecer atrás do chefe de Estado. Deveria ser o último a perecer. Fica evidenciado que a ambivalência islâmica comporta a genialidade e a irracionalidade, de forma razoavelmente equilibrada.
Saindo do cenário oriental, é imperioso não esquecer que os herdeiros de Goethe, Kant, Bach, Mozart et alnão souberam lidar com um certo cabo Adolfo. É relevante lembrar que os herdeiros de Caxias, Rio Branco, Rui Barbosa e Castelo Branco prevaleceram no Brasil mas não souberam lidar com a herança de Gramsci.
À guisa de conclusão, o Dr. Andrew Klavan estatui: “... não há incompatibilidade entre a Fé Cristã e a Ciência. Ademais, a Fé que construiu o Ocidente pode ainda defendê-lo da dupla ameaça da religião arcaica e do cientificismo bárbaro. Em realidade, pode ser a única solução.”. Sem qualquer discordância, é razoável inferir, que uma virtude do magnífico ensaio é precisamente clarificar que o Ocidente — de forma similar aos alemães e brasileiros — não está sabendo lidar com os islâmicos. Uma parcela destes têm a cabeça atrapalhada, proliferam fora de padrões que a atualidade convencionou adequados e não há um único local do mundo onde haja comunidade islâmica que não tenha trauma, conflito ou pelo menos discordância exacerbada. Eles não se contentam em ser; querem que os outros também sejam, custe o que custar. Nesse sentido — e aí profiro uma tremenda blasfêmia — há semelhanças entre nazismo, comunismo e qualquer outro ‘ismo’. Posso aduzir que a simples necessidade de um scholardo porte do Dr. Klavan tratar do tema é um indicador de que à visão conceitual e intelectual não estão correspondendo ações práticas eficazes. A realidade está atropelando os conceitos e o intelecto.
Bem, agradecendo pela oferta de matéria tão relevante, peço desculpas pelos atrapalhados garranchos. É difícil imaginar que alguém leu até aqui. Mas a questão primacial é que o cérebro humano contempla a atrapalhação e nem sempre contempla a possibilidade de agir de forma eficaz em face dela. Ademais, em qualquer circunstância humana, se a densidade de trapalhadas é grande, arquiteta-se o cenário do desastre inevitável. Claro, torço para que prevaleçam as asserções do autor do ensaio e que a paz e a harmonia sejam atingidas pelo Ocidente, com e a despeito do islamismo. Podemos acreditar, pois!
Saudações cordiais,
ARS
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O ensaio "Can we believe?", de Andrew Klavan, pode ser acessado em:
Trata-se de um ensaio longo, porém denso, equilibrado, desafiador e fascinante!
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