Em resposta a um dileto amigo, com pouco trânsito no meio militar, escrevi os garranchos que se seguem.
Caro amigo ...
Em relação às investiduras e aos afastamentos de militares que fazem parte do governo Federal, você me fez duas indagações:
– o que de fato está acontecendo?
– por que as coisas estão ocorrendo dessa maneira?
Minha resposta é simples: não sei!
Prefiro oferecer uma espécie de testemunho que permite a reflexão atinente a essa complexa conjuntura. Ressalto que minhas assertivas não refletem posicionamento oficial ou normativo do Eco Bravo nem das autoridades com responsabilidade para se manifestar em nome da Instituição. A rigor, elas são a interpretação — para a qual me esforço para não arredar um átimo da verdade — do que vivenciei durante os tempos gloriosos em que participei do serviço ativo da Força Terrestre.
Começo pelo período passado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Em 1988, depois de difícil e concorrido concurso, logrei êxito e ingressei no que consideramos um “templo do saber” (modéstia e presunção de lado e entusiasmo total) e fiz parte de um universo com a seguinte caracterização:
– geração formada na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) no início da década de 1970; e
– geração que o general Meira Matos (então comandante da AMAN), com talento e tirocínio, declarou que abrigava os generais da década de 2000.
O curso da ECEME — uma pós-graduação de dois anos (exceção: o período de oficiais engenheiros e médicos é de apenas um ano) — tem o objetivo de preparar os oficiais superiores do Exército para:
– assessoramento de alto nível no âmbito das organizações militares comandadas por general (cerca de meia dúzia de oficiais, em cada um desses Comandos espalhados pelo território nacional);
– exercício, por tenentes-coronéis e coronéis, da função de comandante de organização militar (digamos: cerca de 200 unidades em todo o Brasil — esse número expressa a ordem de grandeza; em outro momento posso enumerá-lo com precisão);
– exercício de uma parcela das funções militares junto a organizações públicas em países com os quais o Brasil mantém relações diplomáticas; e
– ingresso em quadro de acesso ao posto de general.
Cabe mencionar que a promoção a general depende também de outra pós-graduação na ECEME (no posto de coronel, após o exercício do comando de unidade), chamada de CPEAEx (Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército — em realidade, não deveria ser “do Exército”, mas “Nacional”, pois abrange robustamente, durante um ano, os cinco campos do poder).
Por imperioso, menciono os rigorosos mecanismos de avaliação da primeira pós-graduação na ECEME:
– provas de cada módulo;
– trabalhos escritos e práticos; e
– centenas de observações padronizadas (resultantes de desempenho e comportamento em cada atividade desenvolvida) elaboradas pelos pares, superiores e até pelos subordinados.
Essas observações incluem — em palestras de convidado externo — o desempenho na participação nos respectivos debates, com a formulação de sintético juízo de valor e perguntas.
Em um evento de política nacional (não se tratava de forma específica de política partidária, mas da Grande Política do Estado brasileiro), os convidados palestrantes eram o economista Paul Singer, fundador do PT; e um caboclo pertencente ao Instituto Liberal, de São Paulo (cujo nome não me lembro mais). Desse evento, resgato o seguinte:
– formulei uma pergunta para o Sr. Singer indagando-lhe quais seriam, em caso de vitória do PT, os objetivos e os planos primaciais do governo petista para as Forças Armadas;
– diante de algumas centenas de guerreiros atentos, com os olhos esbugalhados de atenção, o palestrante respondeu com elegância, mas com algum constrangimento e sinuosidade; de nenhuma forma, admitiu a vitória do PT e, por via de consequência, deixou um vácuo em sua resposta quanto às possíveis determinações para as Forças Armadas.
Daquele contexto, cabem as seguintes inferências:
– naquela época, com o muro de Berlim ainda firmemente ancorado em terras germânicas e em mentes globais — e com Mikhail Gorbachev ainda vivendo a ilusão de que o castelo de cartas voadoras do socialismo real poderia ser aprumado — o Exército Brasileiro, invicto e invencível, saía na frente, no vislumbre das transformações políticas, estratégicas e ideológicas;
– a ironia nefasta é que nem mesmo os petistas empedernidos estavam convictos de que poderiam alcançar o poder e causar tantos males; e
– a ironia macabra é que poucos vislumbravam quão desastrosa seria e quantos males adviriam de uma administração petista, simpática ao marxismo-leninismo-stalinismo-maoísmo (coloco no mesmo vagão os viajantes de vários vagões, dado que suas diferenças são irrelevantes diante da força motriz que move todos para o desastre anunciado).
Em face das irresponsabilidades que a História nos propiciou, por extensão, ouso cometer alguma, na certeza de que nesse mister de irresponsabilidade, a derrota é acachapante. Se os adePTos e corruPTos (não me refiro à corrupção financeira mas à mental) fossem mais socialistas reais (não me atenho ao “socialismo real”, mas à faculdade de encarar fatos, eventos e circunstâncias com realismo e veracidade), eles constatariam que a alguém como Karl Marx, que não conseguiu gerir sua própria família — 3 filhos mortos na primeira infância, duas filhas mortas por suicídio na adolescência e vida adulta, respectivamente; uma ex-esposa morta também por suicídio; e um filho “bastardo” não reconhecido — faltam condições para conceber os cenários, as conjunturas e as realidades coletivas.
Aí prevalece o que um quase analfabeto idoso ensinou no palco do botequim:
“— Quer descortinar as virtudes de um pai, observe as virtudes dos filhos!”
Um interlocutor solidário completou:
“— Eh, a teoria do espelho não vale para 100% do universo, mas pode-se apostar com grande chance de vitória que vale para uma amostra maior do que 90%”.
Um interlocutor sábio prontamente concordou:
“— A propósito, não podemos comparar Marx a Aristóteles. As concepções deste estão ultrapassando dois milênios, as do outro não resistiram um século.”
Um interlocutor da oposição sacou:
“— Bom, mas o câncer permite o avanço da Medicina e a valorização da vida.”
O interlocutor da objetividade e do realismo fechou a cortina do palco:
“— É verdade, porém isso não torna o câncer menos hediondo!”.
Por uma questão de isenção moral e intelectual — e em um esforço inequívoco para reduzir a dimensão de minhas limitações e falhas — faço questão de ressaltar que pertenci a uma Instituição, o Exército Brasileiro, que contabiliza dois grandes feitos históricos:
– a contribuição para a derrota de um dos maiores flagelos da história da humanidade — o malfadado nacional socialismo; o que ocorreu com o sacrifício de mais de quatro centenas de cidadãos, nos campos de batalha da Itália, em 1944/45;
– a vitória contra outro flagelo, o maior de todos — o socialismo real, que tinha o objetivo, ainda hoje acalentado, de se implantar no Brasil; o que foi concretizado com o sacrifício de uma centena de cidadãos, favoráveis à liberdade, combatendo algumas centenas de contemporâneos, cujo objetivo era levar o País para a obscuridade do autoritarismo inviável em todos os quadrantes da terra.
Por oportuno, é imperioso relembrar que no ano de 2000, na planície de Passárgada (onde o talentoso Manuel Bandeira “era amigo do rei e tinha a mulher que queria na cama que escolheria”), ao lado do túmulo de Ciro, o Grande — que Alexandre, atendendo ao pedido que o persa deixou escrito, determinou que seus comandados não destruíssem, o que fora concretizado na monumental Persépolis, um pouco mais ao Sul —, conversei muito com um companheiro de viagem, o embaixador Ramiro, da Colômbia. Tratava-se de um intelectual talentoso, versado em História universal e da América do Sul.
Logo após minha chegada ao Irã, em 1999, fui recebido pelo embaixador Ramiro, em jantar elegante e concorrido. De forma recíproca, ofereci-lhe uma recepção em minha nova casa, tendo também como convidados os embaixadores do Brasil e do Uruguai. Nas palavras de despedida, despi-me de qualquer formalismo, para falar das andanças, realizando obras na Amazônia, em especial na região fronteira das gêmeas Tabatinga e Letícia (capital do departamento Amazonas colombiano, às margens do rio Solimões) e Ipiranga (mais ao norte e às margens do rio Içá, que vindo da Colômbia ingressava no território brasileiro). Uma interação agradável e enriquecedora teve lugar a partir desse evento.
A conversa em Passárgada obviamente foi direcionada para os complexos aspectos da vastidão amazônica. Em dado momento, o embaixador declarou singelamente:
“— Se os militares colombianos tivessem abraçado a coragem dos colegas brasileiros na região de Xambioá e, similarmente, eliminado algumas dezenas de pioneiros das FARC, nós não teríamos hoje quase 100.000 patrícios mortos em vão.”
Repliquei com um lamento nostálgico:
“— Sem sombra de dúvida! Podemos até mesmo lembrar que o poeta John Donne, no século XVII, diante de seus infortúnios familiares, indagou por quem os sinos dobravam. E, com tristeza incontida, respondeu para si próprio: ‘Eles dobram por cada um de todos os seres humanos’ ”.
Para quebrar o silêncio advindo, aduzi sucessivamente:
“— Parodiando o poeta, poderia asseverar que ‘quando alguém se vai, um pouco de cada um de nós segue junto, porém quando centenas de milhares se vão, um pouco de cada um de nós segue junto centenas de milhares de vezes’ ”.
“— E não seria desarrazoado acrescentar também que, no Sul da Amazônia, os militares brasileiros certamente impediram que ampliássemos, com vigor, a terrível estatística, em que uma dezena de milhões de vezes os germânicos, e uma centena de milhões de vezes os soviéticos e chineses nos fizeram seguir acompanhando aqueles que eles levaram, de forma absolutamente incompreensível, insensata e absurda.”
“— Caro embaixador, seu testemunho e o de John Donne, eu os reproduzirei tantas vezes quantas possíveis, ao longo de minha modesta trajetória.”
Meu caro e resiliente amigo,
Pra chegar até o final dessas bobagens é preciso muita resiliência, quer dizer, nesses tempos estranhos e complexos de pandemia, pode ser que não precise tanta. Até porque você me propôs duas indagações. Eu desconfio que lhe devolvi indagações que só estarão resolvidas junto com a solução da pandemia. Eu até considero isso uma boa ajuda.
Por último e primacialmente relevante, na caserna sempre me foi dado o direito de, lealmente, discordar e manifestar a discordância. Não raro, quando tive capacidade de convencer, comprovando minhas certezas, tive atendidas minhas ponderações. Sempre que as tive contrariadas, minha convicção é que cabiam duas atitudes: (i) sim, senhor; ou (ii) não senhor, quero ir-me embora. Discordar publicamente não cabe em relação ao comandante, ao pai e ao filho — exceto no atinente aos valores fundamentais; mas neste caso, cabem medidas corajosas e requeridas.
Que saúde e alegria se juntem ao reconhecido afeto de todos as pessoas de sua maravilhosa família.
Um fraterno abraço,
RS
PS.
Em relação à eleição de 2018, perguntei a vários amigos confiáveis, em que período da História, em que região geográfica e em que conjuntura — no âmbito da democracia — a facção dita socialista foi apeada do poder pelos adeptos da linha conservadora liberal e democrática, especialmente quando desacreditada pelos indicadores e padrões tradicionais, e cuja perspectiva se configurava como improvável e até mesmo impensável.
Nenhum dos consultados conseguiu agregar um único exemplo a esse que nós vivenciamos e testemunhamos, há dois anos, nas terras de Caxias, Pedro II, Rio Branco, Rui Barbosa e Castelo Branco (um bom exercício seria acrescentar estadistas a esta amostra ...).
Resulta daí que a caracterização do pleito de 2018 não poderá ser esquecida em 2022 e, nos respectivos preâmbulos.
Na continuidade desse contexto, 2026 será o marco e indicador crucial da política brasileira e das gerações que nos substituirão. Vencerá com relativa facilidade o candidato que tiver sido um dos melhores ministros do período republicano brasileiro. Dessa forma, há grande possibilidade de o lançamento da candidatura certa estar resolvida por volta de 2024/25.
Por via de consequência, espera-se a adesão do fraterno amigo ao cenário com grande probabilidade de se tornar realidade.
Ademais, precisamos viver para testemunhar que o mineiro não estava tão certo quando disse que
“política é que nem nuvem: muda de cor, forma ou localização enquanto você toma um cafezinho!”.
RS
[1a. revisão: 1/Nov/2020]