sábado, 31 de dezembro de 2022

A casa, a escola e o rio

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado!"
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador e comerciante.
In Memoriam.

Em 2014, visitei Rochedo-MS e apresentei à querida família uma parcela de minha trajetória, vivenciada nos distantes idos de 1956 a 1960, compreendendo as seguintes vertentes: 

– a casa em que morei, contígua a estabelecimento comercial;

– a escola em que estudei o curso primário; e

– o rio no qual quase me afoguei.

A casa. Em 1956, meu saudoso pai, Oscar Barboza Souto, saiu da fazenda do sogro — onde morou nos primeiros 12 anos de casamento com minha mãe, Alaide — e mudou-se para Rochedo. Nesse povoado, antes das núpcias em 1944, fora um dos pioneiros nas artes do garimpo. 

A despeito da exígua cultura formal — na infância, frequentara apenas 3 meses de escola —, nessa nova vivência rochedense, foi nomeado cartorário (Tabelião do Registro Civil). 

Em 1957, Oscar comprou do Elias Daige uma casa que, além de moradia, abrigava comércio decadente. Esse estabelecimento pertencera anteriormente ao comerciante e fazendeiro Issa Nahas.

Após a demissão do cargo de Tabelião, que exerceu durante cerca de 4 anos, Oscar se tornou Juiz de Paz; subsequentemente, vice-presidente do Partido Social Democrático e, em circunstâncias eventuais, presidente do partido. Nessa condição, exibia com orgulho a foto tirada na convenção do PSD, em Cuiabá, ao lado do Presidente Juscelino Kubstchek e do Senador Filinto Müller.

A família morou nessa casa durante mais de 20 anos. Nela, Oscar deu prosseguimento à criação dos filhos. O minguado comércio inicial foi transformado em um dos maiores estabelecimentos comerciais de Rochedo, com a venda de secos e molhados; tecidos, calçados, confecções e armarinhos; ferragens e outros utensílios domésticos; e até mesmo combustíveis, tendo montado o arremedo do primeiro posto de gasolina da cidade — essa caracterização se deve ao fato de que inicialmente era apenas uma bomba manual de processamento de combustível, que, com a chegada da energia, foi substituída por bomba elétrica.

A casa foi pois a fonte de inspiração e de recursos para que Oscar encaminhasse o processo educacional dos cinco filhos. Todos ingressaram em Faculdade. Aléssio obteve graduação em Ciências Militares na AMAN, em Resende-RJ, e graduação em Engenharia, bem como Mestrado no IME, na cidade do Rio de Janeiro — no Exército, ascendeu ao posto de General de Divisão; Angeliqui concluiu Pedagogia em Campo Grande e se tornou supervisora educacional; Aloizio realizou o curso de Advocacia em Dourados, e se tornou delegado de polícia estadual; Agton começou Pedagogia e Direito, e Edna começou Pedagogia, mas ambos não concluíram os cursos e se tornaram contabilistas.

A relevância dessa casa para Oscar, Alaide e seus filhos, é inequívoca e guarda reminiscências afetivas e profissionais inexcedíveis.

Laura, papai Aléssio, Alessandra e Cecília.
Casa na rua Dr. Arnaldo de Figueiredo, s/nº. Abrigou a família de Oscar Barboza Souto, no período de 1956 a 1993. Pertecera a Issa Nahas, que a transferiu para Elias Daige. Este, por seu turno, vendeu-a em 1956 para Oscar.

A escola. Primeiramente, cumpre destacar a arquitetura da fachada, com o ano de origem, 1934, grafado no alto da parede frontal. Fica a dúvida: será que se trata do ano em que foi concebido o projeto ou o ano de construção da edificação? 

A resposta a essa indagação é irrelevante. Cumpre ressaltar a visão dos administradores daquela época. Eles cravaram em um local afastado das virtudes civilizacionais o marco, não raro ignorado, da prioridade e prevalência da Educação para a construção da grandeza humana.

Destarte, urge mencionar que vários jovens, que se tornaram engenheiros, administradores, advogados, militares de nível superior e professores, fizeram o antigo curso primário nessa saudosa escola. É incrível constatar que o ensino era de nível tal, que pessoas de origem humilde, de uma região com pouco contato com centros minimamente desenvolvidos, pudessem dar o pontapé inicial do processo educacional em estrutura tão modesta; algo que na atualidade, com tantos avanços sociais e econômicos, nem sempre é possível.

Dúvida não resta de que a imagem dessa velha escola continua na fronteira da consciência daqueles que tiveram a ventura de trafegar por seus bancos e, especialmente, aqueles que lograram êxito e conquistaram a condição de profissional de nível superior.

Trigêmeas Cecília, Alessandra e Laura.
Pioneira escola construída em 1934; e substituída, em 1973, pela nova Escola Estadual José Alves Ribeiro. A velha e saudosa escola é adequada para abrigar um museu. As antigas e beneficiadas gerações demandam esse presente fundamental para a história e cultura rochedenses.

O rio. As águas ora quase claras ora barrentas, em decorrência do período chuvoso, do rio Aquidauana, exerceram impacto em corações e mentes. Aprender a nadar, atravessar o rio, saltar das pedras ou de frondosas árvores, brincar e até mesmo brigar em suas margens, enfim encarar os riscos inerentes, eram desafios que as crianças e os adolescentes precisavam ser capazes de enfrentar. E aqueles que fugiam da encrenca eram objeto de brincadeiras, de escárnio e de críticas mordazes dos demais — sofriam pois o que hoje se chama pejorativamente de “bullying”.

 

 

Jamais esquecerei que, na quadra dos 7 anos, papai ainda morava na fazenda do vovô e me colocou na pensão da Dª Isabel, em Rochedo, para estudar. Seguindo a tendência dominante, fui para a beira do rio e naturalmente aventurei-me a enfrentá-lo. Comecei a afogar e aí surgiu o anjo salvador: o filho do ‘seu’ Afonso de Araújo Passos, diretor da escola, mergulhou e me tirou da água. 

Quando meu pai soube, prometeu-me uma surra memorável. Por óbvio, não precisava; deveria aprender a nadar, a partir da parte rasa e tranquila — mais tarde, tive êxito. O rio não era virtuoso nem traiçoeiro; os desavisados é que eram vítimas da falta de bom senso.

 

 Levantar-se ao alvorecer, ir à escola na parte da manhã e, à tarde, após o futebol — cujo campo, desafortunadamente, algum administrador destruiu mais da metade para construção de edificações — passar uma boa hora nas águas não tão serenas do rio era fonte de fortalecimento físico e emocional.

Cecília, Laura e Alessandra; Isabel; Alessandra e Aléssio.
O rio Aquidauana nasce na serra de Maracaju (município de São Gabriel do Oeste) e percorre uma extensão de 620 quilômetros até juntar-se ao rio Miranda a cem quilômetros de sua foz no rio Paraguai. Passa pelas seguintes localidades: Fala-Verdade, Baianópolis, Corguinho, Rochedo e a cidade de Aquidauana.

Sonho bom. Essas lembranças — afora a satisfação de me conferir a modesta condição de cronista bissexto — me levam de volta ao passado, sensibilizam e emocionam. Então, permito-me asseverar o seguinte:

    na casa em que morei, contígua ao estabelecimento comercial, ainda criança, aprendi a relevância da família e do trabalho;

    na escola em que estudei o curso primário, tive a percepção do impacto do conhecimento na vida do ser humano; e

    no rio no qual quase me afoguei, aprendi a nadar e valorizar o mérito da superação do infortúnio.

Por isso, dividir esses sentimentos com minha esposa e nossas queridas trigêmeas envolveu-me em alegria e enlevo. Passados alguns anos de nossa visita, rememorar é sonhar o sonho bom, é viver agradavelmente cada momento inesquecível.

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domingo, 25 de dezembro de 2022

Amado, Saramago e Sartre

 

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado."
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador.
In Memoriam.

Na obra “Encontro de Escritores — Uma reunião inesquecível”, os ‘scholars’ Francisco Gomes de Amorim e Henrique Salles da Fonseca, cuidam de desvendar possíveis assuntos que são tratados em magistral reunião de escritores de língua portuguesa de vários países e de várias épocas, em fictício retorno às plagas terrenas. Entre outros, estão incluídos Camões, Alexandre Herculano, Antero de Quental, Machado de Assis, Gilberto Freyre, Guimarães Rosa e Ariano Suassuna. Na visão dos autores:

“Para além da fama como escritores o que levam os literatos desta vida? E o que falam entre eles?

Eis o que ensaiam os autores deste pequeno livro.

Tratando-se de gente culta e educada, uma coisa é certa: nenhum fala da sua própria obra, mas apenas do que aprendeu com os outros.”

Foram deixados de fora do livro, aqueles que, por infelizes opção e vocação, abrigam em suas mentes o ideário socialista. Cabe então cogitar como seria a participação de três integrantes dessa grei — Jorge Amado, José Saramago e Jean-Paul Sartre; este, francês, para confirmar que toda regra pode ter exceção. Tentar é desafiador. A seguir, é apresentada uma modesta provocação atinente a esses personagens não incluídos na magnífica obra de Amorim e Fonseca.

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A trindade socialista finalmente deu as caras. Conquanto aparentemente tranquilos, Saramago, Amado e Sartre arrastavam-se sem ocultar o peso da consciência dilapidada. Dirigiram-se para uma mesa em que as taças de vinho ainda estavam intocadas. O diálogo entre Saramago e Amado é surpreendente e esclarecedor.

— Estimado Jorge, no passado,  no livro “Entre Quatro Paredes” (“Huis Clos”),  o Jean-Paul colocou no inferno três personagens para purgarem os vícios cometidos na trajetória terrena, quando cada um achava que “o inferno são os outros” (l’enfer c’est les autres”). Similarmente, deixamos nossa eternidade e, aqui retornamos, para purgar as contradições, os desvios político-ideológicos e a mácula da moralidade e da ética, contidos em nossa forma de pensar e agir.

— É bem verdade, José. E nesse sentido, foi estabelecido que o Jean-Paul deve permanecer calado por ter declarado que “somos condenados a ser livres”, mas venera o sistema onde as pessoas são condenadas a viver sem liberdade; e por não se ter sensibilizado com a divulgação dos crimes de Stalin, por Kruschev, no XXº. Congresso do PCUS. Ademais, a despeito de sua expectativa por uma taça de vinho, ele está impedido dessa facilidade francesa; ele só pode ingerir vodca, que pode ser servida agora, ... ou não!

— E você meu caro Jorge, vai ter que renunciar àquela mulata baiana que está lhe esperando na recepção deste conclave. Em nosso purgatório particular, você está impedido de seguir para a Bahia acompanhado pelo espécimen de imprescindível seio desnudo — por seus próprios vícios e também porque o povo baiano está sujeito ao desastre de uma administração socialista. Só lhe resta uma vantagem: você está impedido de confirmar, in loco, o desastre de quem se propõe a abraçar o socialismo.

— É bem verdade, José! Consolo-me em saber que não estou sozinho nessa expiação. Você, por seu turno, não poderá encontrar-se com sua filha Violante e sua última esposa Pilar del Rio (presentes na recepção deste conclave), e seguir para a vila de Azinhaga, onde você nasceu, e onde seria homenageado pela gente da província Golegã. É uma pena, dado que não poderá constatar que, de fato, “o ideal de vida é ser uma árvore”, como você bem afirmara, porém se o socialismo prevalecesse em suas plagas de origem, ele desertificaria o ambiente e assim o ideal de vida passaria a ser um deserto.

— Sim. Mas pelo menos não vivenciamos a tragédia do Jean-Paul que produziu “A Idade da Razão” (“L’Age de Raison”), porém em sua trajetória, tendo abraçado o socialismo, abdicou sistematicamente do uso da razão. Mas mudando de assunto, mestre Amado, considerando que sou um ganhador do prêmio Nobel de Literatura, você não acha que eu deveria pleitear um alívio nas medidas que esses irreconhecíveis patrícios lusitanos estão nos impondo?

— Veja bem, José, os cidadãos do mundo estão vivenciando uma questão paradoxal. Eles devem fazer a opção pelo supostamente grande José Saramago ou pelo inequivocamente grande Boris Pasternak? Como assim? Você me perguntaria. Você ganhou o prêmio Nobel por sua obra literária “Ensaio sobre a Cegueira”relato de uma epidemia torturante que aflige os seres humanos; à qual tem semelhança com a tortura resultante da atuação dos adeptos do socialismo que você venera cegamente. Já o Boris Pasternak também foi premiado com o Nobel de Literatura, exatamente porque, com sua monumental obra “Dr. Jivago”, ele realizou robusta e contundente denúncia contra os absurdos do socialismo.


Nesse instante, achegam-se integrantes da comissão organizadora do conclave para entregar o roteiro das próximas etapas do processo. A segunda etapa da purgação que começaria em breve, consistia na terrível sina de que os três malsinados passariam a ficar eternamente mudos. Um dos portadores da informação aduziu que a terceira e última etapa estava ainda em discussão. As opiniões estavam divididas; havia gente pró e outros contra. A proposta inicial era cortar as mãos dos três socialistas para que não pudessem mais escrever e, subsequentemente, eliminar do cérebro a faculdade de pensar, de tal sorte que a moléstia intelectual e moral que portavam deixasse de ser contagiosa; e não mais se espalhasse por mentes desavisadas.

Passada a surpresa das perspectivas subsequentes, os três interlocutores retomaram o diálogo.

— Afável Jorge, é imperioso que arquitetemos uma solução para impedir essa tragédia. Por acaso, não lhe ocorre alguma ideia. Por pior que sejam as nossas, não custa tentar algo. Afinal, sonhos e milagres existem. Basta que os procuremos.

— José, José Saramago! Talvez o Brasil tenha a solução milagrosa. E se nós renunciarmos a nossos ideários, denunciarmos o assassinato de cem milhões de cidadãos no mundo pelo socialismo e ... — embora não haja cadeiras, a gente precisaria se sentar para não ter um AVC! — e se nós propusermos a eliminação, antes de 1º de janeiro de 2023, das faculdades de pensar e agir dos lulo-petistas brasileiros, com a renúncia automática a qualquer cargo público eletivo ou não?

— Brilhante solução, Jorge (tão Amado)! Mas falta apenas resolver a questão daquele careca. Bom, é fácil! Um tiro na testa contraria os direitos humanos, sendo pois inaceitável, contudo, foi concebido um raio laser com o diâmetro tão diminuto que, se destinado à parte central do cérebro não tem consequência vital, o paciente sobrevive normalmente, porém se torna tão útil quanto qualquer vegetal. Então, chamemos os integrantes da comissão organizadora.

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Por óbvio, o venerável Francisco Amorim não admitiria a inclusão deste texto adicional. Macular a obra não é preciso. Simples assim! Ele jamais quebraria a leveza e a elegância de seu magnífico opúsculo, concebidas com inexcedíveis criatividade e talento. 

Demonstrar que ‘o inferno é o socialismo dos outros’ (‘l’enfer c’est le socialisme des autres’) pode ser objeto de outras obras.

 

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