sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Radar SABER M60

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado!"
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador e comerciante.
In Memoriam.

Este texto trata de aspectos do desenvolvimento do radar SABER M60 pesquisado e desenvolvido pelo Centro Tecnológico do Exército (CTEx), no período de 2006 a 2009. 

Esse artefato tecnológico de rastreio de trajetória aérea destinou-se a integrar o sistema de arma antiaérea do Exército Brasileiro. 

É relevante enfatizar que a pesquisa, desenvolvimento e produção de radar semelhante, com pessoal, recurso financeiro e empresa majoritariamente nacionaisjamais ocorrera no Hemisfério Sul.

Recordar essa façanha é imperioso para que os meandros dessa extraordinária conquista não se percam na poeira do tempo.



 

 

Quatro histórias associadas ao desenvolvimento do radar SABER M60 [1]


 

Primeira história – tentativas de obtenção de um radar de trajetografia; e a evolução para um radar de defesa antiaérea.

Segunda história – alocação de engenheiros recém-formados no IME para trabalhar no projeto de pesquisa & desenvolvimento do radar.

Terceira história – a omissão de empresa francesa na resposta ao pedido de do fornecimento de componente do radar; e a obtenção do respectivo componente na Polônia.

Uma outra história – a atribuição do nome SABER ao radar brasileiro de defesa antiaérea.


Contextualização

SABER é essencial [2]


A notícia da entrega de dois radares SABER M60 para o Exército constituiu-se em estímulo para o relato quatro histórias relacionadas com o desenvolvimento desse equipamento que se constitui numa das maiores conquistas da Engenharia militar brasileira dos últimos anos. Essas histórias são marginais, no sentido de que estiveram à margem do processo pesquisa & desenvolvimento & produção do radar SABER M60, mas em algum ponto elas se imbricaram com as atividades em curso e constituíram uma interseção com o processo, seja no tocante a questões de Engenharia, de gestão ou de comando de organização militar tecnológica.

A primeira história refere-se às tentativas de obter um radar de trajetografia para o Campo de Provas da Marambaia (atual Centro de Avaliações do Exército) e a evolução das ações para a obtenção do radar de defesa antiaérea. A segunda história está relacionada com a alocação de engenheiros militares recém-formados no Instituto Militar de Engenharia para participarem do projeto. A terceira história esclarece a escolha do nome SABER para o radar de defesa antiaérea. E a quarta história diz respeito à obtenção de um componente polonês (o radar secundário) em substituição ao cogitado acessório francês.

Preliminarmente, deve ser considerado que, na condição de chefe do CTEx, no período de 2006 a 2009, solicitei aos gerentes do projeto de desenvolvimento do radar, do projeto de desenvolvimento da fibra de carbono e de outros projetos que estudassem a possibilidade de realizar a preparação de livros atinentes aos respectivos projetos. Evidentemente, a solicitação não pôde ser atendida uma vez que os gerentes de projeto estão sempre envolvidos com uma enorme quantidade de questões cruciais. Assim, o sucesso de algo que esteja fora do contexto do empreendimento, da cultura vigente e do conjunto de meios disponíveis, apresenta pequena probabilidade de ocorrer. Caberia pois ao chefe da organização militar adotar as providências para o desencadeamento dessa atividade paralela àqueles projetos. Isso não ocorreu. 

Conquanto as laboriosas equipes do CTEx tenham obtido êxito na implantação do portal de Internet no CTEx, do informativo CTEx Notícias e da Revista CTEx P&D, declaro aqui o meu mea culpa, por não ter conseguido desencadear a publicação dos livros que oferecessem para a posteridade, no devido tempo, a história da obtenção do radar e dos demais empreendimentos bem-sucedidos, na expectativa de que meus sucessores não descurem de dar esse passo importante para registro bibliográfico da pesquisa & desenvolvimento e ciência & tecnologia militares brasileiras.

Tentativa de obtenção de um radar brasileiro

Se a solução não existe, nós a inventamos [3]

Enveredando pelas metas deste texto, iniciaria por relatar a primeira história. Por ocasião da investidura no cargo de diretor do Campo de Provas da Marambaia, no início de 2003, lá encontrei, indisponível há mais de dez anos, o radar de trajetografia Adour, fabricado pela empresa francesa Thompson. Esse radar fora adquirido na década de 1970 com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de artefatos bélicos, com ênfase para foguetes e mísseis. 

Nos primeiros dias daquele Comando, recebi uma proposta comercial da empresa Omnisys [4] para a recuperação do radar ─ uma iniciativa de meu antecessor no Comando, que vislumbrara a conveniência de iniciar esforços para a disponibilização do radar. A análise da proposta mostrou a inviabilidade econômica ─ valor não constante da programação orçamentária de mais de um milhão de reais; bem como inviabilidade operacional da meta colimada ─ a proposta abrangia a recuperação do radar, mas as essenciais infraestruturas de telecomunicações e de apoio não faziam parte do escopo do serviço proposto e, destarte, não haveria efetividade no sistema de rastreamento. Alguns anos antes, houve contato com a empresa francesa sucessora da Thompson e obteve-se proposta de recuperação total do sistema de rastreamento. O orçamento excedeu R$ 6 milhões (no câmbio da época, US$ 4 milhões).

Durante mais de seis meses, foi feita uma tentativa de recuperação do radar Adour com recursos humanos da própria organização militar. A despeito da elevada qualificação de engenheiros eletrônicos e de comunicações e de técnicos de nível médio do Campo de Provas, não houve êxito na empreitada. Além da inexistência de equipamentos laboratoriais, era necessária uma base industrial mínima, só encontrada em empresas do ramo.

O passo seguinte para equacionar a obtenção de um novo radar de trajetografia ─ disponível na maioria dos campos de prova estrangeiros do porte do Campo de Provas da Marambaia (atual Centro de Avaliações do Exército) ─ foi identificar, no mercado mundial, empresa fabricante, e especificar um radar de menor porte e mais moderno do que o Adour. Nesse sentido, obteve-se uma proposta técnico-comercial de um radar de trajetografia Weibel, de fabricação dinamarquesa. O radar foi oferecido por empresa mediadora nacional pelo valor de R$ 3,5 milhões (cerca de US$ 2,7 milhões). A proposta foi encaminhada para os escalões superiores. A quantia elevada para um equipamento que não estava nas prioridades do Exército impediu o prosseguimento da obtenção do radar.

Em um almoço oferecido pelo Campo de Provas da Marambaia durante a visita dos alunos do 2º. ano da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército àquela organização militar, eu ouvi, de dois oficiais superiores (um de Cavalaria e outro do Quadro de Engenheiros Militares, especialidade Cartografia), a referência à empresa Orbisat e à qualificação de seus integrantes na questão atinente a radar. Com os dados requeridos, em vinte e quatro horas, estava agendada a apresentação institucional de um dos diretores da empresa. Tratava-se de engenheiro brasileiro formado no Instituto Tecnológico da Aeronáutica que foi fazer doutorado na Alemanha e, após a conclusão do curso, lá permaneceu, chefiou instituto tecnológico alemão, desenvolveu e produziu radar; fundou naquele país empresa de prestação de serviços com radar, depois veio para o Brasil e associou-se à empresa Orbisat, com o objetivo de desenvolver radar e prestar serviços que exigissem esse equipamento. Como consequência, dessa interação, em três meses, foram elaboradas ─ conjuntamente, por engenheiros do Campo de Provas da Marambaia e da empresa Orbisat ─ as especificações para o desenvolvimento de um radar brasileiro de trajetografia. Subsequentemente, a empresa Orbisat apresentou a proposta técnico-comercial para seu desenvolvimento e produção a um custo de cerca de R$ 12 milhões (da ordem de US$ 9 milhões). A proposta foi encaminhada para os escalões superiores, mas não prosperou por causa das prioridades impostas pelo orçamento disponível.

Essa tentativa isolada e pontual de proposta de obtenção de um radar de trajetografia ─ enfatize-se: atribuição funcional do chefe da organização militar, no sentido de tomar a iniciativa de propor solução para problemas da organização chefiada ─ não foi em vão. Em realidade, houve sua interseção com os esforços emanados da alta administração do Exército, resultante de pressões da demanda da Artilharia, para a obtenção de um radar de defesa antiaérea, bem como com esforços em curso na então Secretaria de Ciência e Tecnologia e no âmbito dos engenheiros do Centro Tecnológico do Exército ─ os quais desde a década de 1980, vinham estudando a questão de radar [5] ─ que resultaram na convergência de vetores para o desenvolvimento de um radar de defesa antiaérea, com a participação de mais de 30 engenheiros brasileiros, com fulcro primacial na gestão administrativa, tecnológica e industrial do CTEx e da empresa Orbisat. Deve ser enfatizada a participação adicional de dezenas de organizações militares e civis. À guisa de ilustração e pela importância, convém citar as seguintes: o Departamento de Ciência e Tecnologia ─ cujo chefe àquela época era o General de Exército Alberto Mendes Cardoso ─, responsável pela grande gestão, em nome da alta administração do Exército e, especialmente, pela gestão para aprovação do projeto nas altas instâncias da Força Terrestre e pelas gestões junto ao Ministério da Ciência e Tecnologia e sua Financiadora de Estudos e Projetos, para a obtenção dos imprescindíveis recursos financeiros; a Brigada de Artilharia Antiaérea, pelo fundamental apoio operacional, na condição de destinatário principal de artefatos de defesa antiaérea; o Centro de Avaliações do Exército (substituto do Campo de Provas da Marambaia), pela impertinente e eficaz participação nos aperfeiçoamentos resultantes do processo de avaliação; e a UNICAMP e a USP, universidades que contribuíram com relevantes apoios específicos, de cunho científico-tecnológico [6].

Ao assumir a chefia do CTEx, na condição de observador privilegiado, pude testemunhar ─ da alvorada do radar SABER M60 aos primeiros testes operacionais, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Amazonas ─ o épico desempenho de equipes dedicadas, capazes e obstinadas de engenheiros militares e servidores civis, daquela valorosa organização militar, na consecução de uma demanda imperiosa do Exército e fundamental para o País.

Alocação corajosa de recursos humanos

Passo agora à segunda história. O encaminhamento de processo atinente à realização de curso de mestrado e de doutorado, por engenheiros do CTEx, deixou de atender apenas as prescrições normativas formais. Adicionalmente, passei a submeter cada candidato a avaliação pessoal, em entrevista, para dar o requerido parecer por ocasião da remessa do processo.

Recebi a solicitação de audiência da 1º Tenente Mariana Pralon, que apresentara o requerimento para a realização de mestrado na Pontifícia Universidade Católica, do Rio de Janeiro. Quando ela ingressou em minha sala para a entrevista, em meu microcomputador estava sendo executada a música do balé Quebra-nozes. Após os cumprimentos habituais, o seguinte diálogo teve curso:

─ Mariana, você poderia me dizer o nome da música que está sendo tocada?

─ General, por que o senhor está me perguntando isso?

─ Porque eu gostaria que você me dissesse o nome da música. Apenas!

─ Ora! Aos quinze anos, eu deixei o balé, que pratiquei durante quase uma década, para me dedicar à Engenharia.

─ Bem, eu não sabia disso. Nesse caso, não é preciso mais responder minha indagação. Apenas curta! Devo admitir que, infelizmente, só conheci essa música aos 50 anos, no Teatro Bolshoi, quando assisti ao balé Quebra-nozes, apresentado pelo corpo de baile daquele templo de cultura [7]. Depois, escolhi um bom restaurante de Moscou para celebrar com minha namorada algo improvável para quem saiu da roça, lá na fímbria do pantanal sul-mato-grossense.


A entrevista se seguiu. Inicialmente, procurei explorar as questões familiares e afetivas para me certificar de que as pressões de um curso de mestrado altamente intensivo em tecnologia ─ e, portanto, com elevada demanda de energia, dedicação e criatividade ─ seriam suportadas por quem iria realizá-lo, cumulativamente, com as atividades estressantes da participação na pesquisa & desenvolvimento do primeiro radar genuinamente brasileiro. Em seguida, passei às questões concernentes à aptidão, qualificação e conveniência, para ela e para a Instituição, requeridas pelo curso de mestrado.

Minha percepção é de que estava diante de uma engenheira com uma excepcional capacitação pessoal e profissional ─ afetivamente, muito equilibrada e com invejáveis talento e estatura profissional, alicerçados na condição de engenheira formada com destaque no Instituto Militar de Engenharia. Enfim, essa oficiala reunia (em realidade, reúne) talento, habilidade e disposição empreendedora incomuns. Essa assertiva foi confirmada, posteriormente, pelo desempenho da Mariana no curso de mestrado ─ foi o destaque dentre quase uma dezena de mestrandos, sendo vários participantes do curso com dedicação exclusiva.

O fato relatado sobre a 1º Tenente Pralon ocorreu cerca de dois anos após sua bem-sucedida inserção na pesquisa & desenvolvimento & produção do radar SABER. Ela era uma dentre os cinco talentosos engenheiros recém-egressos do Instituto Militar de Engenharia que tiveram alterado o batismo profissional, ao receberem, em janeiro de 2006, a notícia de que suas classificações, após o término do curso de Engenharia, foram alteradas. Naquele mês, foram formalizadas suas designações para trabalharem no escritório compartilhado pelo CTEx e pela empresa Orbisat, na cidade de Campinas, sob a coordenação técnica do diretor daquela empresa, com o objetivo de pesquisar, desenvolver e produzir o primeiro radar brasileiro de defesa antiaérea, mediante contrato cuja orientação cabia ao gerente militar do projeto ─ o Tenente-Coronel Carlos Castelo Branco Jorge, do CTEx. Além desses cinco engenheiros, trabalharam também naquela cidade o mencionado tenente-coronel engenheiro militar; um tenente-coronel de Artilharia, com o curso de Estado-Maior [8]; e um major e um capitão engenheiros militares. O gerente militar do projeto alternava suas atividades entre Campinas e Rio de Janeiro, dado que havia uma equipe do CTEx, constituída de uma dezena engenheiros militares e engenheiros servidores civis, alocados, em terras cariocas, para dedicação exclusiva ao projeto do radar.

Embora não seja inédita, a decisão para alocar recursos humanos militares, especialmente os recém-formados, para participarem, em traje civil, de trabalhos conjuntos com empresa, pela amplidão constatada no projeto do radar, pode ser considerado algo fora da cultura dominante e resultado de descortino, visão estratégica e desassombro, do Chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia, do Exército ─ General de Exército Alberto Mendes Cardoso. Não poderia ser desprezada a possibilidade de insucesso do projeto, e, caso viesse a ocorrer, submeteria o responsável pela iniciativa ao crivo da análise histórica ─ que, no caso, seria implacável com um eventual resultado desastroso.

Como constatação adicional, resultante da análise do emprego de recursos humanos, pode-se asseverar que a pesquisa & desenvolvimento & produção do radar de defesa antiaérea brasileiro não teria sido possível sem a participação de engenheiro brasileiro, civil, de inteligência rara, que se qualificou na Alemanha ─ Dr. João Moreira, diretor da Orbisat. Similarmente, não teria sido possível sem a gestão de engenheiro militar do Exército, com sólidos conhecimentos técnico, operacional, normativo e gerencial ─ Tenente-Coronel Roberto Castelo Branco Jorge ─, complementado pela participação dos demais engenheiros do Exército e de oficial de Artilharia antiaérea. Vale dizer, dois vetores de talentos foram inquestionavelmente essenciais e necessários nessa conquista. 

Adicionalmente, da observação do desempenho da 1º Tenente Pralon e de seus colegas, é possível afirmar que os talentos jovens devem ser encarados com especial atenção pelos responsáveis pelo desencadeamento de grandes projetos. 

Atribuição do nome SABER

Obtenha dados e conhecimentos corretos e escreva 

a crônica antecipada do sucesso garantido.


O estabelecimento de nome para artefatos inéditos ganhou relevância no CTEx, a partir da segunda metade desta década, como forma de aumentar a autoestima daqueles que se dedicam com obstinação à tarefa de pesquisar & desenvolver & produzir aquilo que não fora feito antes em nosso País. 

Como orientação geral, os nomes e (ou) as siglas deveriam satisfazer algumas ou todas dentre as seguintes características: apresentar simplicidade e, na medida do possível, elegância; estar associados com as respectivas funcionalidades; ser fáceis de reproduzir, se possível, em vários idiomas; e ter impacto sonoro ou visual. Alguns exemplos ilustrativos originados no âmbito das equipes desenvolvedoras são relatados a seguir.

O simulador de Tiro Informatizado com Requisito Operacional para Pistola (Simulador TIRO Pst) foi batizado de maneira adequada, associando a sigla à sua funcionalidade.

O Reparo para Metralhadora Automatizado X (REMAX) é um sistema de tiro pioneiro, com um nome pronunciável na maioria dos idiomas. O nome REMAX sugere a força e energia encontrada na funcionalidade do artefato.

O Simulador de Helicóptero Esquilo e FEnec (Simulador SHEFE) também tem o nome e a sigla suficientemente expressivos e sugestivos sobre a condição de orientação inicial do treinamento de pilotos. 

O Veículo Aéreo Não Tripulado Tático com alcance de 15 Km (VANT VT 15) é nomeação que aproveita uma sigla consagrada, associando-a a outra sigla e número definidores da funcionalidade do veículo.

Ao questionarmos quais os verbos mais impactantes de qualquer idioma ─ e atendo-se, especificamente, ao idioma português ─, podemos asseverar que ser e saber são candidatos preferenciais à resposta. Nesse sentido, nos idos de 1986, em minha dissertação de mestrado, baseada em Inteligência Artificial, cujo tema foi “Um Sistema Especialista para Diagnóstico de Avaria de Carro de Combate”, denominei os dois sistemas informatizados que faziam parte do trabalho de iniciação à pesquisa com as siglas SER (Sistema Especialista com Regras) e SABER (Sistema especialistA Baseado em framEs e Regras), respectivamente.

Assim, ao solicitar aos integrantes da equipe de pesquisa & desenvolvimento & produção do CTEx que propusessem um nome para o radar de defesa antiaérea, cujo processo de obtenção estava sendo iniciado ─ de preferência, associado com a funcionalidade de saber qual era a ameaça encontrada no horizonte ─ a resposta foi exemplar, feliz e inquestionável. O nome proposto foi: Sistema de Acompanhamento de alvos aéreos Baseado na Emissão de Radiofrequência (SABER). O radar que estava germinando fora definitivamente batizado. Inicialmente, era o radar SABER X60 (denominação do primeiro exemplar, que embora protótipo, fora testado, operacionalmente, em 2007, coincidentemente, por ocasião dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro [9], depois, radar SABER M60 (que, mesmo antes de concluir o processo de avaliação, fora empregado operacionalmente, em 2008 e 2009, em exercícios no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e no Amazonas).


Transferência de tecnologia

A inverdade incomoda, agride. A verdade ensina, enobrece.[10]

Na elaboração do escopo do projeto do radar SABER, constatou-se que um de seus componentes (o radar secundário, já disponível no mercado mundial) poderia ser adquirido de empresa francesa, satisfazendo adequadamente à nossa matriz cronograma versus recursos financeiros. Obtiveram-se dados que comprovam que a citada empresa habitualmente exportava esse componente para outros países desenvolvidos. Em consulta à citada empresa, verificou-se que era possível a sua aquisição por brasileiros.

Na ocasião aprazada, foi enviada correspondência para a empresa francesa, solicitando a proposta técnico-comercial do primeiro exemplar, com a possibilidade de prosseguimento das aquisições, à medida que os exemplares subsequentes fossem necessários. Mesmo diante da reiteração da solicitação, os franceses ignoraram o pleito brasileiro.

Constatou-se que um integrante da empresa fabricante do radar secundário procurou profissionais do setor público brasileiro para tratar da oferta de venda de radar de defesa antiaérea e, aproveitando o ensejo, teceu comentário depreciativo sobre o projeto de desenvolvimento do radar nacional em curso. Uma das alegações era de que o que estava sendo feito era a reengenharia de radar estrangeiro. Obviamente, isso era uma falsidade. Afora, a elevada capacitação de todos os militares e civis envolvidos no processo, havia a contribuição de engenheiro brasileiro que mergulhara na cultura tecnológica alemã, por cerca de uma década, tendo, naquele país, pesquisado, desenvolvido e produzido radar de geração atualizada.

Diante do possível atraso no projeto, que poderia resultar na extemporânea pesquisa & desenvolvimento & produção do componente secundário, foram buscadas alternativas no mercado mundial. Constatou-se que havia a possibilidade de aquisição na Polônia. Era preciso agir com urgência.

Então, houve a busca de apoio do Vice-Chefe do Departamento de Ciência e Tecnologia. Sua esposa informara que ele se encontrava viajando a serviço e que retornaria ainda nesse dia. Pedi-lhe que, se possível, fosse solicitado ao esposo uma resposta urgentíssima à ligação telefônica. Cerca de meia noite, o Vice-Chefe retornou a ligação. Informei-lhe que, em 72 horas, um engenheiro militar brasileiro estava embarcando para Varsóvia, para, conjuntamente com um diretor da empresa parceira, negociar a possível aquisição de radar secundário de fabricante polonês. Em face da premência de tempo, a abordagem escolhida foi conceder-lhe dispensa para desconto em férias a ser gozada na Europa. O Vice-Chefe do DCT não concordou com a solução informada e determinou que fosse enviada uma mensagem fax solicitando as providências normativas para a consecução da viagem (portaria autorizadora do Comando do Exército). Ponderei que até a expedição da portaria, poderiam transcorrer mais de 15 dias e haveria a possível perda da oportunidade (evento paralelo, na Polônia, com interesse para o processo, viagem de diretor da empresa parceira para o exterior, necessidade de satisfazer ao cronograma inicial do projeto). O Vice-Chefe do DCT, General de Divisão Ubiratan Athaide Marcondes, usando a ênfase que lhe era peculiar, agravada pelo horário avançado em que estávamos tratando do assunto, asseverou, de forma definitiva, que era para enviar a mensagem da forma que ele já orientara e que eu tomasse as providências para que a viagem ocorresse nas próximas 72 horas, como eu propusera, independentemente de qualquer circunstância previsível ou não. A rigor, o General Ubiratan determinou que a ação fosse consentânea com o procedimento normativo vigente, sem, contudo, obstá-la e impedir que se perdesse a oportunidade requerida.

 

Epílogo

Há relevância nas histórias relatadas? Dúvidas há. Que se considere o aspecto de interesse dominante!

Que inferências podem ser extraídas do êxito no processo, bem como na tentativa estrangeira de frear a pesquisa & desenvolvimento & produção do radar SABER? É essencial compreender a recorrente luta entre aqueles que buscam a independência tecnológica, industrial e comercial e aqueles que detêm esse poder. É essencial interpretar a falácia daqueles que prometem transferir tecnologia, mas que, com diplomacia, elegância e, às vezes, de forma rude, se necessário, negam-na, inapelavelmente.

A história da Humanidade, escrevem-na com glórias, os que não se acomodam e buscam a autonomia com tenacidade e pertinácia; os que acreditam que é possível enfrentar as potências detentoras de poder, sobretudo o poder tecnológico; os que creem que o ente humano e seu talento são o principal insumo de qualquer empreendimento. Nesse sentido, a qualidade e a qualificação dos brasileiros colocam-nos em pé de igualdade com os nativos dos países organizados.

É fundamental a percepção de que aquilo que o mercado internacional negar, pode ser pesquisado, desenvolvido e produzido de forma autóctone. É essencial a consciência de que as parcerias só devem ser estruturadas e formalizadas com a participação paritária de ambas as partes. A cuidadosa análise das parcerias internacionais mostra que é possível o posicionamento com a satisfação de interesses legítimos. Podemos e devemos exigir mais!

Enfim, este artigo nos remete para uma parcela de nosso País — que minoritária seja! — onde impera um deserto, seja na insuficiência da política e de procedimentos educacionais, seja no descaso com a necessidade de busca de autonomia tecnológica e estratégica, seja com a pobreza dos processos de gestão de alto e médio níveis em todas as áreas intensivas em conhecimento (não por falta de talento, de idealistas e de profissionais inquestionavelmente dedicados, mas por falha nos processos decisórios de alto nível). Por imperioso e relevante, cabe enfatizar que o mencionado deserto não deve e não pode nos remeter para a renúncia às tentativas de conquista da condição de ator global na marcha histórica que caracteriza as grandes nações.

Este texto esteve guardado por cerca de 10 anos. É revisto agora (dezembro de 2021) em face da notícia da apresentação em Campinas do radar SABER M200, no rastro do pioneiro SABER M60 e do subsequente SENTIR M20. Nesse contexto, os meandros submersos da produção do radar SABER M60 e, de resto, o conhecimento do êxito de seus herdeiros reforçam a prevalente ideia de que a fé, a esperança e otimismo jamais podem ser ignorados, abandonados ou perdidos. Ademais, há inequívocas possibilidades para a redução da dependência externa, no campo científico-tecnológico, bem como para a ampliação do poder militar alicerçado em equipamentos militares pesquisados, desenvolvidos e produzidos no Brasil, por nacionais e com recursos e empresas majoritariamente nacionais. 

 

 

Referências

 

[1] “Quatro histórias associadas ao desenvolvimento do radar SABER M60” — Este título foi inspirado nas três histórias contadas pelo Sr. Steve Jobs em seu discurso aos formandos de Stanford, quando fora convidado para paraninfo da turma. As semelhanças param aí, as assimetrias, não. A diferença abissal entre o Sr. Jobs e qualquer outro ser humano justifica as assimetrias. O Sr. Jobs contou histórias sobre si próprio. Neste artigo, são relatadas histórias de terceiros, não tão brilhantes quanto o Sr. Jobs, mas que também espalharam luzes em suas sendas e, portanto, são credores da admiração de todos nós. Alguns, eu cito nominalmente, outros, cujo mérito justificaria a citação, deixo de fazê-lo por razões de estilo e de estruturação do relato ─ aceitem minhas escusas, pois. Homenageio a todos que nos ofereceram o brilho, o exemplo e a referência de seus engenhos!

[2] “SABER é preciso.” — parodiando Fernando Pessoa: “Navegar é preciso.”

[3] “Se a solução não existe, nós a inventamos.” — parodiando Átila: “Se não encontrarmos o caminho, nós abrimos um.”

[4] Até então, a Omnisys era empresa nacional, de propriedade de brasileiros e com capital brasileiro; agora, é empresa nacional, com propriedade franco-brasileira, sendo majoritariamente francesa. Para o bem ou não! 

[5] Com as reconhecidas qualificação e sabedoria, amalgamadas em seus 50 anos de serviços ininterruptos prestados ao Exército e ao País — inclusive com mais de 10 anos como professor do IME — certamente, o General de Brigada Antonio Jorge da Cruz Schendel pode dar seu testemunho sobre o início de trabalhos de pesquisa & desenvolvimento de radar na década de 1980.

[6] Afora dezenas de engenheiros militares e servidores civis do CTEx (em regime de dedicação exclusiva) e do IME e do CAEx (com participações eventuais), houve fundamental participação, em questões pontuais, da Unicamp (mediante contratação para desenvolvimento inovador na área de antenas) e da USP (também mediante contratação, nos processos de avaliação pelo CAEx, com efetivo desempenho nos aperfeiçoamentos do radar SABER que se sucederam).

[7] Eu e Isabel chegamos a Moscou no dia 25 de dezembro de 2000. Na capital e em São Petersburgo, onde também estivemos, a temperatura variava entre -8 e -18º C. Caminhar ao ar livre, durante 40 minutos, do hotel próximo ao Kremlim até a Galeria Tretiakova, para dar uma olhada em obras de artistas russos, permitiu vivenciarmos um pouquinho o inverno que ajudou a derrotar Napoleão e Hitler.

[8] Tenente-Coronel Eric Wurtz, de Artilharia e do Quadro de Estado-Maior da Ativa.

[9] O início dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, em 2007, constituiu-se em marco fundamental do desenvolvimento do radar SABER. Havia a hipótese de o Exército ser empregado na segurança daqueles eventos, com a necessidade de monitoração do espaço aéreo do Rio de Janeiro. A rigor, o Exército não foi oficialmente empregado na segurança. Mas, como os dispositivos de defesa precisavam estar em condições de serem empregados, na véspera dos Jogos, houve exercício de monitoração do espaço aéreo com o emprego satisfatório do radar SABER X60. As equipes de pesquisa & desenvolvimento & produção e a equipe operacional de Artilharia antiaérea que apoiava o CTEx podem descrever o evento com a clareza e precisão devidas.

[10] “A inverdade incomoda, agride. A verdade ensina, enobrece.” — parodiando a ética.

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário