terça-feira, 22 de agosto de 2023

Apologia da família e dos amigos

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado!"
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador e comerciante.
In Memoriam.

Com a curiosidade intelectual costumeira, o bravo paraquedista Heitor — que não é o antagonista de Aquiles, na guerra de Troia, no homérico poema Ilíada — inseriu no WhatsApp da Turma Marechal Mascarenhas de Moraes a lista dos 100 maiores filmes de 10 décadas passadas (1910 a 2010) [1]. Em resposta ao guerreiro contemporâneo, postei uma lista adicional de 12 filmes aos quais atribuí a condição de “ausências relevantes” [2]. O audaz precursor paraquedista Silvano, sempre diligente, atento e eficaz, declarou que ratificava o acréscimo. O brilhante precursor paraquedista Bolivar, com sutileza e lucidez, emendou com a referência aos “112 melhores filmes ...”.

Esses amigos fizeram-me fuçar nas entranhas das lembranças e me transportar ao ano de 1961, quando me mudei de Rochedo para Campo Grande. Fui estudar no Colégio Estadual Campo-grandense e morar no Hotel Liberdade, localizado na rua XV de novembro, contíguo à praça Ary Coelho e bem em frente à antiga e providencial biblioteca pública da cidade. A maioria dos hóspedes do modesto hotel era composta de estudantes oriundos dos municípios vizinhos. No domingo, um programa habitual era a matinê no Cine Alhambra. A turma voltava para o hotel, sentava-se na calçada e a conversa girava sobre futebol e, principalmente, sobre o filme a que assistiram. Como eu não tinha dinheiro e não ia ao cinema, ficava sentado no canto, ouvindo os comentários sobre o tema do filme, o desempenho dos atores e demais aspectos constatados — era a minha forma de curtir o que não podia presenciar.

Em geral, meu pai ou minha mãe ia a Campo Grande uma vez por mês e me entregava o dinheiro para pagar a mensalidade do hotel e a lavadeira de roupa — era a arte do possível. Eu descobri que se eu mesmo lavasse minha roupa, o valor economizado dava para ir uma vez por mês ao cinema e, de quebra, após a saída, dava para me deliciar com um sorvete da sorveteria Torino; então não hesitei e a senhora lavadeira dançou. A espera mensal era estimulante. Aí, entrava no cinema e ficava aguardando a abertura da tela, o que ocorria lentamente, perfazendo um momento quase mágico, ao som da música A Summer Place [3] O filme poderia até não ser bom, mas o sorvete que os mestres do gelado italianos produziam com proficiência era inigualável. 

Chegando quase ao final do ano, papai passou por um período bom no pequeno comércio, com que mantinha os cinco filhos, e foi muito generoso com o recurso para comprar calça e camisa novas — afinal eu tinha apenas uma única de cada, para passear, nos finais de semana, durante todo o ano. Com a sobra, no longo intervalo entre o fim do programa pedagógico e as provas finais, consegui ir ao cinema 30 dias seguidos. Houve uns 4 ou 5 filmes que vi mais de uma vez. Deu para ir ao Cine Alhambra, o mais próximo do hotel; ao Santa Helena, o velho “pulgueiro”; e ao Rialto, o melhor dos três. Enfim, sanei o desajuste situacional resultante de vontade e possibilidade.

Assim é que cinema e sorvete estão em um cantinho da mente lá do período da adolescência. E ainda hoje a sétima arte exerce o fascínio daqueles tempos.

De ilusão em ilusão, vida segue com percalços e vitórias. As alegrias e emoções tornam-se contidas, sem, contudo, prejudicar o senso de que nascer, viver e sonhar sonhos bons constituem os grandes milagres que tornam nossa existência virtuosa e plena de sentimentos e crenças, às quais nos permitem declarar, com o coração e a mente, que viveríamos tantas vezes quantas possíveis, se isso fosse dado a acontecer.

As mensagens e as interações com os amigos, atinentes à arte cinematográfica, levaram a reminiscências de passado remoto e transportaram para perspectivas que seria desejável que estivessem em futuro ainda distante. Nesse sentido, vale destacar que um momento chegará, em que o sentir e pensar estarão se esmaecendo cada vez mais, a tal ponto que restará apenas a percepção de um grande cenário com dois níveis. O inferior vai aos poucos desaparecendo e o superior vai saindo da penumbra e clareando cada vez mais. O nível do cenário que se vai e o que chega estarão preenchidos pelos familiares que nos foram virtuosamente impostos; e pelos amigos, isto é, pelos irmãos que tivemos o privilégio de adotar ao longo da vida. Então, a família sanguínea e a família dos amigos preencherão a imagem final que constitui a transição de nossa passagem por este mundo tão complexo e enigmático quanto se queira.


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[1] TOP 100 BEST MOVIES OF THE PAST 10 DECADES – TIME’s Stephanie Zacharek on the top films from th 1920s through the 2010s – Para ler, clique em: https://time.com/collection/100-best-movies/

 

[2] Ausências relevantes:

- Era uma vez no Oeste;

- Dersu Uzala;

- O poderoso Chefão I;

- Perfume de mulher;

- Apocalipse Now;

- 2001 Uma odisseia no espaço;

- Amadeus;

- Patton;

- Ben-Hur;

- Platoon;

- A lista de Schindler;

- Casablanca.

Depois acrescentei mais 4 filmes não considerados pela revista Time:

- Psicose;

- Uma mente brilhante;

- Teoria de tudo;

- Busca do soldado Ryan.

 

[3] A Summer Place – Percy Faith & His Orchestra — Para ouvir, clique em: https://youtu.be/_Wd3dlEvodk?si=IrwOxZtX6Uxo-7V8

 

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