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"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro, comerciante, tabelião e juiz de paz. In Memoriam. |
Na véspera do novo milênio, fui para o Irã e lá permaneci durante 1990 e 2000, na condição de Adido de Defesa, Naval, do Exército e da Aeronáutica, junto à Embaixada do Brasil em Teerã. Foi um período extraordinário de minha vida pessoal e profissional. Afinal, viver no Oriente Médio — no local que sediou a antiga Pérsia, onde o dinamismo histórico se faz presente e impacta enormemente o ser humano — deixa lembranças que não se apagam com a evolução do tempo.
No lado profissional, a aventura iraniana foi uma experiência magnífica. A embaixada é um ambiente completamente diferente da caserna. Felizmente, desde os primeiros dias, fui muito bem acolhido pelo embaixador Cláudio Luiz dos Santos Rocha e sua exemplar esposa Maria Helena. Embora, não houvesse uma relação de subordinação, entre o adido e o embaixador, eu lhe conferia o tratamento de comandante, até porque no contexto de elegância e gentileza com que ele sempre me tratou, após chegar ao escritório (denominado Aditância), diariamente, eu me dirigia para seu gabinete para cumprimentá-lo. Essa atitude gerou uma espécie de reunião matinal, em que dialogávamos sobre assuntos amenos do cotidiano e assuntos institucionais de interesse mútuo. Nesse contexto, o Cláudio Luiz demonstrava interesse pelas questões militares, resultantes de meus contatos, reuniões e jantares, muito frequentes, no âmbito da comunidade de Adidos militares. Esses eventos substituíam a falta de dados e as dificuldades de diálogo com o setor militar iraniano — algo típico de um regime ditatorial religioso — que impedia as visitas habituais (como ocorre no Brasil e na maioria dos países democráticos) às organizações militares iranianas; nesse sentido, o contato com a instituição militar se restringia às reuniões pouco frequentes com um militar do ministério da Defesa, em um escritório chamado “protocolo”. De outro turno, agindo com consideração profissional rigorosa, o Cláudio Luiz transmitia sua rica vivência e incomum capacidade de observação e interpretação das realidades locais, regionais e até mesmo mundiais. Ele se valia desses contatos para, com sabedoria, transmitir aconselhamento e orientação. Tratar da figura do embaixador Cláudio Luiz e do ser humano calmo, modesto, culto — enfatizo: de uma vasta cultura geral e específica — é algo motivador e que me causa grande senso de justiça. Ele nos deixou recentemente, mas sua imagem fica preservada para referência virtuosa de comportamento humano.
Ademais, aproveitei ao máximo as possibilidades de estar presente nos locais que, habitualmente, só existem nos livros.
Assim, na companhia de adidos militares de vários países, estive em Susa, cidade histórica, hoje situada na região sudoeste do Irã, a leste do atual Iraque; e que fez parte dos impérios babilônio, persa e parsa. A cidade foi fundada por volta de 4000 a. C. Susa abrigou, sucessivamente, os sumérios, acádios, elamitas, babilônicos, persas, entre outros povos antigos. Fazem parte de sua evolução personagens como Nabucodonosor, Xerxes, Ciro II e Alexandre — sendo que os dois últimos a invadiram e conquistaram no devido tempo.
De Susa, a comitiva foi levada para as margens do rio Tigre, próximo de seu encontro com o rio Eufrates, ao norte do Golfo Pérsico. Então, olhei com os olhos a Mesopotâmia, tão cara aos apreciadores da história antiga.
Em outra oportunidade, segui para a região norte do país, passando por Tabriz, talvez a mais importante cidade do noroeste do país e cheguei até as proximidades da fronteira com o Iraque. Fui até a fronteira com o Azerbaijão e com a Armênia. Enfim, dessa forma, estive no sudoeste, oeste e noroeste do Irã. Deixei de comparecer a localidades da região leste, na fronteira com o Turcomenistão, Afeganistão e Paquistão, por ser esta a região mais conflagrada do país e com riscos enormes — foram divulgadas notícias de sequestro de visitantes para serem usados pelos opositores ao regime, em interação com o governo do país, como meio de troca para a libertação de prisioneiros.
Merecem ser citadas também as visitas, em ocasiões distintas, às cidades de Qom, principal centro religioso islâmico xiita; Isfahan e Xiraz, ambas com relevância militar e, especialmente, centros de pesquisa & desenvolvimento nuclear; Bushehr; aquartelamento no litoral do Golfo Pérsico; Kermansharh, sede de quartel-general militar; Persépolis, ruínas de fantástica capital, alicerçada em notável arquitetura (que fora destruída por Alexandre) e a planície de Pasárgada, com o túmulo do Ciro (ele pleiteara que ninguém o destruísse, com a frase: “Oh homem! Seja você quem for, venha de onde vier! Pois sei que virá. Eu sou Ciro, que fundou o império dos persas. Não tenha rancor de mim por causa deste pequeno abrigo que protege meu corpo.” (Ciro, 520 a. C.)
Convém ainda mencionar as idas frequentes a Dubai (a cada mês ou dois meses), para receber os recursos financeiros destinados à Aditância, bem como meu próprio vencimento. Como alguns anos antes, o governo iraniano congelou os ativos bancários de todos os clientes em Teerã, os diplomatas e adidos militares ficaram mais de seis meses sem poder movimentar a conta corrente. Então, eles passaram a receber os recursos financeiros através de banco em cidade europeia ou nos Emirados Árabes Unidos. Dessa forma, todos os recursos a mim destinados eram depositados pelo Exército na conta do Banco do Brasil de Nova Iorque e depois transferidos para a conta de um banco árabe em Dubai, a mais importante dentre as 7 capitais dos Emirados que compõem o país.
Risco e surpresa
De resto, é oportuno mencionar a estadia de quase uma semana no Círculo Militar do Exército Iraniano, na praia Challoos, no Golfo Pérsico. Ressalto que esse evento foi oferta do “protocolo” militar iraniano aos adidos militares estrangeiros. Estes deveriam permanecer no interior da ampla dependência social-esportiva do Círculo Militar.
No terceiro dia, contrariando as recomendações, resolvi fazer uma corrida externa; o auxiliar do adido chinês (um tenente de 26 anos) resolveu me acompanhar. Então, fizemos um percurso de cerca de 28 km, ida e volta. Meu objetivo era conhecer uma dependência prisional que ficava nas imediações — algo proibitivo naquela circunstância. Por óbvio, corri risco de até mesmo ser expulso do país; felizmente, nada foi observado pelos anfitriões.
O oficial chinês ficou surpreso e alquebrado. Ele não imaginava que o percurso era longo e que eu vinha de três maratonas realizadas no Brasil. Em consequência, antes da metade do percurso, ele não suportou a batida e passou a intercalar corrida e caminhada. Passados dois dias, o adido chinês me interpelou para saber o que havia ocorrido, dado que seu auxiliar estava de cama.
No atinente ao lado pessoal, inicialmente, morar no Irã solteiro — e viver sob uma ditadura islâmica, onde as mulheres só podem mostrar a face em público, afora outras restrições — era um grande problema. Curiosamente, no primeiro semestre de 1999, conheci a brasileira Isabel, filha do embaixador Cláudio Luiz e de Maria Helena. Nossa presença em eventos frequentes nas embaixadas do Brasil e de países amigos, ocasionou nossa aproximação. Então, passamos a namorar; viajamos para Dubai e para cidades europeias (passamos o réveillon de 2000 em Paris); e retornamos juntos para o Brasil. Nós nos casamos e, em 2003, tivemos as queridas filhas Alessandra, Laura e Cecília. Hoje, passados mais de 20 anos, nossas herdeiras chegaram ao final da adolescência e ingressaram na Universidade — Alessandra e Cecília, na UnB; e Laura, no CEUB.
Essa ambientação com o tempo enriquecedor passado no Irã resulta do fato de que, a despeito de ser uma ditadura islâmica repressora em todos os sentidos, o país tem história e cultura memoráveis e, portanto, deixou marcas inesquecíveis nas lembranças, no conhecimento e na experiência. Então, o gostar do país, do povo e da cultura ainda hoje estão presentes em meu pensamento.
Ora, assistir agora aos ataques militares entre Israel e o Irã é muito impactante — eu enfatizaria: chega a ser arrasador. Muito poderia ser dito a respeito das causas distantes e próximas, porém vale mencionar algumas questões essenciais: após a vitória da Revolução Islâmica, em 1979, com a ascensão do aiatolá Ruhollah Khomeini à condição de Supremo Líder e depois de sua morte, a substituição pelo aiatolá Ali Khamenei, que até hoje exerce a condição de ditador supremo, há alguns objetivos fundamentais do Irã: a permanência da ditadura religiosa, a tentativa de prevalência do Irã como potência regional, disposição manifesta de destruir Israel e a aceleração das medidas para concretizar a produção de bombas atômicas, um objetivo nacional permanente do Irã.
Pois bem, o Irã fomentou os chamados proxies, minorias terroristas que se posicionavam a favor do objetivo do Irã de destruir Israel. São elas: os palestinos radicais, na Cisjordânia; o Hezbollah, no Líbano; os fundamentalistas, na Síria; o Hamas, na faixa de Gaza; e os Houthis, no Iêmen. Com o ataque em 7 de outubro de 2023, do Hamas ao território de Israel, causando a morte de mais de 1000 jovens israelenses e a prisão de cerca de 200 reféns, Israel desencadeou um processo de tentativa de destruição do Hamas, que causou a morte de mais de 40.000 dentre seus integrantes. Em seguida, Israel atacou os terroristas do Hezbolah. Depois, contribuiu para a mudança do regime na Síria (que era bancado pelo Irã). Até agora, está exercendo um duro combate contra os Houthis. Por conta desse processo, em 2024, o Irã atacou Israel com mísseis e foguetes; Israel respondeu de forma parcial, bombardeando as defesas aéreas e as bases de lançamento de mísseis do Irã. Essas ações podem ser consideradas escaramuças de pequena monta.
Na passagem para essa nova conjuntura, além de perder bilhões de recursos empregados no financiamento de seus proxies, o Irã se tornou muito enfraquecido; daí, resultando a provável necessidade de acelerar a produção de um artefato atômico. Ao ser eleito, o presidente Donald Trump tentou um acordo no sentido de impedir o progresso iraniano na obtenção da bomba atômica. As reuniões programadas não chegaram a bom termo. Por essa razão, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu — que é mandatário que mais tempo ficou na condição de primeiro-ministro de Israel; e tem o objetivo inarredável de permanecer ainda mais tempo no poder, bem como de inscrever seu nome na história — tomou a decisão de atacar o Irã. O resultado do primeiro dia do conflito: dezenas de organizações militares e de pesquisa & desenvolvimento nuclear foram bombardeadas pela aviação israelense. Foram atacadas as seguintes cidades iranianas: Teerã, Tabriz, Isfahan, Hamedan, Ahvaz, Khorramabad, Kermanshah e Qasr-e Shirin. Foram mortos uns 6 cientistas nucleares: Abdolhamid Minouchehr, Ahmadreza Zolfaghari, Seyed Amirhossein Feqhi, Motlabizadeh, Mohammad Mehdi Tehranchi e Fereydoun Abbasi. Entre outros, foram mortos também 4 comandantes militares de alto escalão: Major General Mohammad Bagheri (Chefe do Estao-Maior das Forças Armadas do Irã), Major General Hossein Salami (Comandante do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica), Major General Gholamali Rashid (Comandante do Quartel-General Khatam al-Anbiya) e o Almirante Ali Shamkhani, principal assessor do Supremo Líder, Ali Khamenei.
Enfim, o conflito tende a se agravar nos dias subsequentes. Quaisquer que sejam os resultados, a crise é mundial, afetando, por exemplo, a economia do petróleo, que no primeiro dia subiu cerca de 10% no mercado internacional.
O que importa nesses despretensiosos garranchos? Eu os escrevo para deixá-los como testemunho para familiares e amigos. Mais do que tudo, quero asseverar meu inexcedível lamento, minha grande tristeza, pelo terrível conflito enfrentado pela região que está inserta em minha modesta evolução pessoal e profissional ou — quem sabe, com um certo atrevimento e (ou) egoísmo — em minha incomum história de vida, que, a despeito das falhas e vícios resultantes da condição humana, engloba o nascimento na roça; a saída da casa dos pais aos sete anos de idade; o estudo apenas em escolas públicas; a graduação e mestrado na melhor escola de Engenharia do País; e a oportunidade de ter vivido, durante dois anos esplendorosos, no país resultante da antiga Pérsia, que acolheu, como conquistador, Alexandre, o Grande, o mais ousado comandante e líder humano.
Importa sobretudo, o privilégio de ter, com Isabel, que conheci quando tive a ventura de morar no Irã, conquistado a felicidade de conceber três criaturas adoráveis — Alessandra, Cecília e Laura.
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[Localização do Irã no Oriente Médio e respectivas fronteiras com os países vizinhos] |
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[Viagens realizadas no Irã, por Aléssio Ribeiro Souto, no período de 1999 a 2000, na condição de Adido Militar de Defesa, Naval, do Exército e da Aeronáutica, junto à Embaixada do Brasil em Teerã] |