"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro, comerciante, Tabelião e Juiz de Paz. In Memoriam. |
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O Centro Acadêmico de Medicina (CAMED) da Faculdade de Medicina da UnB planejou e realizou, no Teatro Plínio Marcos (localizado na faixa central do Eixo Monumental de Brasília, nas proximidades do estádio Mané Garrincha), a Cerimônia do Jaleco, com o objetivo de recepcionar a turma que ingressou, no corrente ano, no curso de Medicina da universidade — a denominada Turma 120.
A Alessandra foi escolhida Patrona da Turma 120 e, afora ser uma das apresentadoras da solenidade, recebeu a atribuição de fazer o discurso de recepção aos calouros, nesse emblemático evento que, surpreendentemente, ocorreu pela primeira vez na UnB.
Decidi incluir as palavras da querida filha neste blog por duas razões: para que jamais se apague dos corações e mentes de familiares e amigos um testemunho da vocação da Alessandra — cuidar do ser humano, tentando construir-lhe um mundo inequivocamente melhor; e porque suas palavras, por um lado, refletem simplicidade pela informalidade com que ela formulou a oração e, por outro, porque os conceitos que ela ressaltou evidenciaram, no simbolismo desse primeiro contato dos acadêmicos de Medicina com o Jaleco, a complexidade da interação do médico com o ser humano, diante da imperativa necessidade de evitar que a doença tenha impacto grandioso, cujo limiar, como exceção, pode ser a morte.
Expresso pois o privilégio e até mesmo a honra de enaltecer a distinção com que a Alessandra foi premiada ao ser escolhida Patrona da Turma 120 e a excelência com que ela se houve no cumprimento da responsabilidade que lhe foi atribuída.
Bom dia a todos!
Fiquei muito feliz quando fui chamada para ser Patrona de vocês e dirigir-lhes estas palavras. Estou um pouco à frente no curso e por isso me dou a licença poética de falar um pouco com vocês sobre a medicina, apesar de existir uma infinidade de colegas que sabem muito mais e que já passaram por isso, dos egressos mais antigos até os que ainda estão no curso, que ainda nem se formaram, como eu. Todos esses estão à frente, eu viajei muito pouco nesse universo que é a medicina. Não obstante, eu assumi essa pretensão de falar-lhes porque, se eu sei e vejo um pouco mais longe que vocês, é exatamente por estar olhando sobre os ombros destes gigantes que são os meus veteranos, que me acolheram e cuidaram de mim, trazendo paz ao caos que é entrar em um curso de medicina no patamar da excelência como o nosso. Assim, eu me submeti ao desafio de ser, para vocês, integrantes da turma 120 de Medicina da UnB, pelo menos um terço do que esses veteranos foram para mim, e espero agora cumprir esse papel tão difícil, que tão naturalmente alguns deles fizeram por mim — razão pela qual sou muito grata a eles.
E o que eu tenho a ver com a turma 120? Precisarei citar a cidade de Ceres, em Goiás, que abrigou um projeto da medicina e da enfermagem da UnB – a minha história com a turma é indiscutivelmente indissolúvel desse acontecimento. Na viagem a Ceres, eu pude conhecer muitos de vocês individualmente. Tive contato com o jeitinho tão especial, animado, cheio de vida dessa turma. E talvez por tanto expressar esse carinho e admiração que desenvolvi pelos integrantes da turma 120, que me chamaram para ler essa carta para vocês. O evento de ver vocês, naquela experiência, reinflamou em mim a chama que, muitas vezes, oscila e se enfraquece no dia a dia da medicina. A dureza da realidade cotidiana nos massacra, é verdade. Nós precisamos constantemente nos relembrar de que não somos fazedores de provas, cumpridores de prazos, mas sim seres humanos dotados de capacidade, de vontade de aprender e diante de outros seres humanos, enfermos, que buscarão a nossa resposta e a nossa assistência. Pensando nos que não conheci em Ceres, mas com os quais tive contato em outros momentos, posso dizer que senti essa mesma motivação e esse mesmo olhar curioso e aventureiro que vi em Ceres. Afortunados são os que se aventuram, portanto, parabéns por decidirem embarcar nessa aventura – vocês merecem essas congratulações, pois só se aventuram os que são corajosos; para se ter fortuna é preciso ter coragem, e todos vocês foram muito corajosos ao fazerem essa escolha. Dessa forma, eu espero que a cerimônia possa representar toda a fortuna sobretudo simbólica, não material, que é estar nesse curso.
Nesta carta, eu gostaria de fazer três pedidos.
Em relação ao primeiro, convém relembrar que, em diferentes textos sagrados, desde a Bíblia até o Corão, é presente a ideia muito forte de que nós estamos exatamente onde deveríamos estar, obra da vontade divina. Em variadas formas de espiritualidade, esse princípio também existe, seja por fruto do destino, seja por arquitetura do cosmos. Mesmo para aqueles que são ateus, é factível acreditar nisso – como escreveu Camus, Sísifo precisa acreditar que é feliz, ou seja, é melhor acreditar que se está onde deve estar do que o contrário. Desse modo, eu gostaria de pedir que vocês possam sempre acreditar que estão no lugar que merecem; afinal, não à toa chegaram aqui, foram muitas batalhas e sacríficos para isso. E é claro que em um curso tão difícil como esse – e abro um parêntese, tem que ser difícil; afinal, como poderia ser fácil lidar com a vida de outra pessoa? – nós podemos nos sentirmos insuficientes, que não estamos no lugar certo, que não merecíamos ou deveríamos estudar aqui, mas isso não é verdade. Embora seja difícil nos convencer disso, vocês estão aqui, e tudo que foi feito para que estivessem aqui já foi uma grande jornada por si só. Então, continuemos a jornada, mesmo nos momentos mais difíceis, quando parece que não estamos entendendo nada em uma aula, ou na véspera de prova de bioquímica, que nós continuemos acreditando que estamos no lugar onde deveríamos estar, que nós merecemos estar e pelo qual nós batalhamos.
O segundo pedido é para que honremos a nossa história e a história de quem nos acompanhou e apoiou desde o princípio. Neste auditório, estão essas pessoas, como o meu pai, e foram elas que permitiram que estivéssemos aqui hoje.
O terceiro pedido é que vocês sigam fazendo o melhor que podem fazer, simplesmente e acima de tudo, porque vocês podem; ademais, porque vocês devem. Afinal, existem pacientes que vão estar esperando e que vão precisar disso e de vocês.
Além dos pedidos, dou três conselhos. O primeiro: levem a sério o curso de vocês, porque com grandes poderes vem grandes responsabilidades. No livro Eclesiastes, está escrito que o Altíssimo deu-lhes a ciência da medicina para ser honrado em suas maravilhas. Ou seja, vestir esse jaleco traz realmente grandes poderes, mas não para acreditarmos que somos deuses, ou que podemos brincar de deuses. Pelo contrário, somos humanos, incrivelmente humanos, e nenhum homem é uma ilha, somos parte de um continente; assim, a morte de um homem nos afeta e todos compartilhamos essa característica de humanidade. E, diante da morte, nós escolhemos contribuir com um verso no texto que é a vida dos nossos pacientes. Se essa miscelânea literária que fiz com Salomão, John Donne e Walt Whitman ficou confusa, podem lembrar só da frase do Homem-Aranha mesmo (risos).
O segundo conselho: aprendam muito bem a medicina, mas lembrem-se também de que quem sabe somente medicina, nem mesmo medicina sabe. Então, interessem por medicina, sim, e muito, mas interessem também pelos seus pacientes, pela história não clínica deles, pela vida deles, por música, por arte, por cultura popular, por livros, por esportes, por festas, por namorar, por tudo aquilo que nos faz humanos e nos faz viver e que não tenha a ver com o ciclo de Krebs.
O terceiro conselho: permitam se orgulhar e ficar felizes por onde vocês estão e acreditem no que vocês podem ser. Vocês podem ser muito, pois o caminhante faz o caminho ao caminhar; quem faz o curso de medicina são vocês, estudantes, e eu espero que vocês façam com muito amor, muita dedicação e muita alegria mesmo.
Para finalizar, contem sempre comigo, eu me proponho a acender um ponto luminoso para que vocês se encontrem quando se sentirem perdidos; eu sou uma guia que caminha na mesma direção desconhecida (risos), mas que já conhece parte dos percalços por já ter andado nessa rota, decifrado o início do labirinto e traçado, no mapa, as sendas que percorri. Vocês me ajudaram a refazer esse percurso — e a mapeá-lo e enxergá-lo novamente — então espero ajudá-los também.
Sejam muito bem-vindos ao curso de medicina da Universidade de Brasília!
Obrigada!
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