"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, comerciante, tabelião e juiz de paz. In Memoriam. |
No período de 7 a 11 de outubro de 2024, um grupo de acadêmicos de Medicina da UnB foi para a cidade de Ceres, no estado de Goiás, para participar de um tradicional evento denominado “Projeto Ceres – Estágio de Vivências na Atenção Primária”. O grupo foi integrado pela maioria dos jovens que lograram êxito no ingresso no curso de Medicina naquela Universidade, no corrente ano, bem como por alguns alunos que ingressaram em anos anteriores, aí incluídos a querida filha Alessandra e outros acadêmicos veteranos (estes não foram na véspera da primeira aula de Medicina do curso, porque ingressaram na UnB durante a pandemia do coronavírus e, por essa razão, nequele ano, o Projeto Ceres foi cancelado).
O citado evento tem o patrocínio da UnB e tem se repetido nos últimos 20 anos. Uma das razões é o fato de que, no âmbito de cerca de 4.000 municípios brasileiros, Ceres tem o melhor apoio público de saúde para a população. Então, durante 4 dias, é desencadeada uma enriquecedora sequência de observação, contato e avaliação de atividades de Medicina nessa pequena cidade (cerca de 30.000 habitantes), com ênfase para vivências em organizações públicas de saúde da cidade — um hospital e 4 unidades básicas de saúde (UBS).
Intermediando a programação, ocorrem reuniões distintas e surpreendentes. Uma delas é a entrega de cartas, presentes e pequenas lembranças preparadas pela família, para cada acadêmico.
Por intermédio de um dos coordenadores, nós enviamos para a Alessandra, sem que ela soubesse, uma sacola contendo:
– cartas dos pais e das duas irmãs;
– um pequeno pinguim que este pai trouxera para ela da Antártica;
– um ursinho que ela ganhou quando pequena; e
– os dois livrinhos que ela escreveu (e nós publicamos) quando ela tinha 7 e 8 anos, respectivamente.
A seguir, são apresentadas as cartas que lhe enviamos.
Brasília, 2 de outubro de 2024
Querida filha Alessandra,
Nossa família continua vivenciando um período magnífico e singular: a conquista do acesso à Universidade pelas três queridas filhas, ocorrido em 2022; e o encaminhamento para a segunda metade de cada um dos cursos escolhidos. Então, dirijo-me especialmente a você, em face do evento organizado por integrantes da Universidade Brasília, na cidade de Ceres, em Goiás, que você está participando.
É imperioso inserir um parêntese, nesta cartinha, para destacar que essa cidade goiana teve origem graças à iniciativa do engenheiro Bernardo Sayão, o visionário construtor da rodovia Belém-Brasília. Então, em face de ter um dos melhores desempenhos do Brasil, na gestão de saúde e no apoio de Medicina à população — conforme foi informado pelos organizadores do evento — Ceres faz parte da excelência histórica e gerencial de nosso País e, por essa razão, sua passagem por aí se constitui num período virtuoso de sua senda acadêmica. Fecho o parêntese e volto ao tema desta missiva.
Permita-me, querida filha, mencionar alguns aspectos de sua trajetória de vida, que tanto honra e orgulha seus pais e irmãs.
Inicialmente, menciono o momento de sua chegada ao mundo! Relembro as alegrias e emoções que experimentei quando o médico obstetra colocou-a sobre o seio de sua mãe e, depois de alguns minutos, passou-me aquele corpinho inexcedível (maravilhoso, fantástico, inigualável, ...; a rigor, faltam adjetivos) para que eu melhor sentisse o desencadeamento do grande milagre da vida — a concepção, a evolução intrauterina e o nascimento! Recordo essas alegrias e emoções e revivo-as de forma tão especial, agora que estou me dirigindo a você, um tanto distante, porém tão perto da alma e do coração.
A partir daí, cada período de sua existência apresentava novidades e surpresas.
O aprendizado da leitura e da escrita por você foi inesquecível. Tenho até receio de transmitir o que farei agora, até pela possibilidade de descrença em meu testemunho. O que é certo é que a partir do manuseio e da observação dos livrinhos infantis que passamos a presentear as filhas, a partir do primeiro aninho de vida, você conseguiu, aí pelos três ou quatro anos, começar a ler, ... sozinha, num processo de ‘autoaprendizado’. Foi assim que aconteceu seu processo de assimilação da capacidade de leitura.
Destaco agora algo que me parece pleno de ineditismo e de impensável criatividade. Foi talvez na busca de algum elogio — aí pelos cinco aninhos de idade — você voltou-se para mim e formulou o seguinte questionamento:
“— Pai, na escola, na igreja e em todos os lugares, as pessoas dizem que foi Deus quem fez todas as coisas! Então, quem é que fez Deus?”
Um tanto desconcertado, e pensando com rapidez para não demonstrar fraqueza, tentei dar uma resposta que, a rigor, não esclarecia a indagação. Ei-la:
“— Filha, você acabou de fazer a pergunta essencial que os seres humanos estão elaborando desde os primórdios da civilização; e até hoje não conseguiram equacionar plenamente. E aí pode estar a origem das religiões em todos os agrupamentos humanos do mundo. E todas as religiões se apoiam no conceito da divindade, na ideia da existência de Deus. E para isso, surgiu a noção de fé. É preciso ter fé em Deus. Não é a razão ou a lógica nem mesmo o bom senso que subsistem para alicerçar a existência de Deus. É a fé! É preciso ter fé e nada mais; nenhum questionamento!”
Há outras coisas para serem reveladas ou relembradas. Permito-me tratar um pouquinho do período em que você começou a identificação do seu eu, o encontro consigo mesma,a descoberta de que é gente — estou me referindo ao início da adolescência. Bem, o pai é complicado, exigente, inconveniente e sábio (será que é mesmo?), mas é sobretudo um observador privilegiado, pois pode assistir ao prosseguimento do milagre da vida, refletido na face, no sorriso, nas ações e reações da querida filha. Então, eu me lembro que na passagem dos treze para os quatorze anos, você disse:
“— Pai, estou namorando!”
O que fazer? O que responder nessa hora? Se não me engano, disse algo parecido com:
“— Sim. Alegro-me pela confiança que você demonstra em compartilhar essa notícia. Jamais esqueça que o namoro é entre duas pessoas e tudo o que ocorrer ao longo do tempo deve ser a vontade das duas pessoas. Jamais permita que ocorra algo que não seja resultante de sua vontade. Só permita aquilo que você acredita que é certo, que está de acordo com os valores que você preza e pratica, e que você, definitivamente, quer.”
Assim, o tempo foi passando. Ao longo do ensino fundamental e médio seu sucesso foi a marca registrada, mercê de resultados educacionais que a colocavam sempre no topo de cada turma de sua evolução escolar. Neste momento de confidências por intermédio desta mensagem, revelo a satisfação que sentia quando constatava que seu desempenho na escola era complementado por atitudes e ações de liderança que você demonstrava nas interações com seus colegas de turma. O apreço e a confiança que a maioria depositava em você deixava este pai muito lisonjeado e orgulhoso.
O tempo implacável, porém, generoso; impessoal, contudo, pleno de expectativa e esperança, trouxe-nos a mais um momento crucial da filha querida, em seu percurso de vida — a tentativa de ingresso na universidade e a escolha de uma profissão que vai amparar todo o percurso que tiver sido sonhado. E esse momento chegou na maior crise enfrentada pela humanidade no século atual: a crise da pandemia do coronavírus. Então, houve a decisão, oriunda do governo, de cancelar aula presencial durante vários meses do segundo ano e no início do terceiro ano do ensino médio. As aulas passaram a ser online.
Você tomou uma decisão corajosa; a escolha foi muito corajosa: filha querida, você decidiu que faria Medicina. Seu objetivo de vida seria cuidar do bem-estar e da saúde de seres humanos. Definitivamente, você viveria para tornar o mundo melhor para aqueles que cruzassem seu caminho. Mas como isso poderia ocorrer com o término do ensino médio de forma inesperada e, aparentemente, insatisfatória? Não houve a iniciativa de fazer curso preparatório (supostamente, o imprescindível “cursinho”), como a maioria dos estudantes que aspiram a especialidades de alto nível.
Aí prevaleceu seu talento, sua vontade inabalável, alicerçados em sua evolução escolar. Seus resultados nos vários mecanismos de acesso ao nível superior lhe possibilitariam ingressar em várias universidades públicas federais brasileiras. Este pai coruja (e até meio bobo, ... não me importo que assim considerem!), ora preocupado e ansioso, ora esperançoso, otimista e confiante, sua mãe, suas irmãs, seus avós e amigos próximos receberam a notícia maravilhosa, extraordinária: você decidira ingressar no curso de Medicina da ESCS! E assim foi durante dois meses, até que surgiu o resultado da Universidade de Brasília; você estava sendo convocada. Você não hesitou e fez a opção pela UnB! E é por isso que você está nesse evento na pequena, mas notável cidade de Ceres. Que você aproveite ao máximo os conhecimentos, ensinamentos e vivências que os notáveis organizadores do encontro aspiram.
E não se esqueça por um átimo de segundo, da alegria, satisfação e incomensurável orgulho de todos os integrantes da família, por suas vitórias, conquistas e evolução na construção de um mundo melhor. Que nesse mundo que você sonha prevaleçam as noções de solidariedade, generosidade, liberdade, verdade, coragem e ética, fundamentos da democracia — único sistema que permite ao ser humano se direcionar para seu objetivo fundamental: a busca da paz e da harmonia.
Um saudoso beijo de seus admiradores incondicionais,
Seus pais, Aléssio e Isabel
Suas irmãs, Laura e Cecília
Brasília, 2 de outubro de 2024
Querida irmã Alessandra,
Eu sei que eu não falo muito isso, mas eu tenho muito orgulho de você, das coisas que você está conquistando.
Ser uma médica exige muita responsabilidade e você tem todos os requisitos para ser uma ótima profissional.
Acredito muito em você.
No meio artístico, nós temos uma espécie de oração para nos dar boa sorte, antes da nossa apresentação. Nela, nós dizemos que ninguém solta a mão de ninguém; juntos nós fazemos o que ninguém consegue fazer sozinho.
E eu digo isso pra você: você nunca estará sozinha! Confie no seu potencial e nas pessoas que te amam; elas sempre estarão ao seu lado.
Espero que a sua caminhada pela universidade seja de muito sucesso e muitos aprendizados.
Será uma honra para mim chamá-la daqui a alguns anos de Dra. Alessandra Souto.
Com amor, Cecília
Brasília, 6 de outubro de 2024
Menina Ale, você é braba demais!
Pra cima deles!
Aproveite muito essa jornada!
Laura
Brasília, 7 de outubro de 2024
Querida Alessandra,
Que você possa aproveitar a sua viagem, ao máximo, para conhecer melhor o interior do nosso país, conhecer mais os desafios da sua profissão!
Muito sucesso!
Um grande abraço e beijos,
Da mamãe Isabel
F1. Partida para Ceres – UnB – Brasília – 7/Out/2024. |
F2. Partida para Ceres – UnB – Brasília – 7/Out/2024. |
F3. Alessandra almoçando com Thomás et al – Ceres – 9/Out/204. |
F4. Atividade na UBS Vila Nova – Ceres – 9/Out/2024. |
F5. Atividade no Hospital São Pio X – Ceres – 10/Out/2024. |
F6. Banho de mangueira após evento recreativo – Ceres – 11/Out/2024. |
F7. Alessandra e a alegria das vivências no Projeto Ceres – 11/Out/2024. |
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