quarta-feira, 16 de julho de 2025

Carta para Amorim

"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado."
Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro, comerciante, tabelião e juiz de paz.
In Memoriam.

Estimado amigo Amorim [1],

Li com deleite o belo texto "Os Açores e Gomes de Amorim".

Não basta relatar o término da infância na Amazônia de seu bisavô, por volta de 1839, e depois a passagem pela ilha lusitana; é preciso ter a assinatura Gomes de Amorim. Assim, posso recordar minha recente passagem sobre a magnífica hileia equatorial [2].

Posso também apreciar como, no século XIX, alguém saia de Portugal, venha para o Brasil e possa ser pioneiro nas plagas amazônicas, dos 10 aos 13 anos, transitando por mais de 1000 quilômetros, entre os silvícolas, como afortunadamente procedera seu magistral bisavô. Posso recordar outro relato seu que dá conta da missiva que ele, ainda adolescente, enviara para Almeida Garret e, em face da elegante e oportuna resposta, decidira retornar a Portugal, e sob a inspiração daquele escritor, imiscuíra-se nos ambientes pedagógicos e intelectuais, e se tornara influente escritor.

Entendo que sua história daria um filme monumental, desses que só Akira Kurosawa poderia conceber. Vale lembrar que o mestre japonês tinha cogitado de acabar com a própria vida; mas tinha que encerrar sua já iniciada obra "Dersu Uzala" — sobre um explorador da Sibéria. Ao concluir, o resultado ficou tão bom, que ele inferiu ser a vida valiosa, e decidiu continuar vivendo.

Com muito gosto, ele faria "Gomes de Amorim", à altura da obra memorável que contribuiu para salvar sua vida.

Aqui em Brasília, a rotina segue muito bem, no âmbito de nossa modesta família.

E continua muito mal no contexto da política e das malsinadas questões da justiça. Com certeza, Caxias, Rio Branco, Rui Barbosa, Jucelino e outros poucos grandes de nossa história se envergonhariam das coisas que andam rolando.

Afinal, a hedionda estrutura política brasileira é responsável por um dos piores sistemas educacionais dos países mais importantes do mundo; e é responsável por 100 milhões de pessoas sem esgoto sanitário. Isso num país com enorme extensão territorial, grande população e inexcedíveis riquezas naturais. Entendo que em nosso país faltam traumas, intelectuais e estadistas — que possibilitaram as grandes nações da história. 

Creio que não é aspiração absurda sonhar com a prevalência da liberdade, verdade, coragem e ética no ambiente daqueles que têm a responsabilidade de conduzir nossos destinos.

Afora qualquer outro pensamento, a história dos Gomes de Amorim fomenta a faculdade de pensar e de imaginar coisas sérias e provocantes.

Grande e fraterno abraço,

ARS


 

 

Notas

[1] Conheci o escritor português Francisco Gomes Amorim, na viagem à Antártica, de 5 a 12/11/2009, em meio à programação de viagens patrocinadas pela Marinha do Brasil. Depois de deixar Portugal e viver duas décadas na África, Amorim veio para o Brasil, onde permaneceu nos últimos 40 anos e se tornou mais brasileiro do que muitos dentre os nativos. Como intelectual, ele fora convidado pela Força Naval para participar da aventura no continente gelado, ao lado de oficiais-generais das Forças Armadas e de autoridades dos poderes da República. Na atualidade, ele ultrapassou os 90 anos de idade e continua escrevendo com a lucidez habitual. O texto “Os Açores e Gomes de Amorim” é uma iniciativa para recuperar escritos de seu bisavô, seu homônimo, atinentes à época em que, na adolescência, esse ancestral veio para Belém do Pará e embrenhou-se na Amazônia, acompanhando indígenas.

 

[2] Em 1981, após terminar a graduação em Engenharia elétrica no IME, fui para a Amazônia e servi durante 4 anos na Comissão Regional de Obras da 11ª. Região Militar, em Manaus-AM. Naquela época, tive a oportunidade de realizar obras nos Pelotões de Fronteira situados nas seguintes localidades: Marco BV-8, na fronteira com a Venezuela; Japurá e Ipiranga, na fronteira com a Colômbia; e Palmeira e Estirão do Equador (ambos às margens do rio Javari), na fronteira com o Peru. Vale lembrar que, em 2022, o jornalista Dom Phillips foi covardemente assassinado nas proximidades do rio Javari, onde trabalhei há 40 anos. É oportuno registrar nossa interação, dado que, em 2018, fui entrevistado por ele e tive citação em dois de seus artigos no prestigioso jornal britânico The Guardian.

 

 

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