"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado!" Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador e comerciante. In Memoriam. |
Em 2014, visitei Rochedo-MS e apresentei à querida família uma parcela de minha trajetória, vivenciada nos distantes idos de 1956 a 1960, compreendendo as seguintes vertentes:
– a casa em que morei, contígua a estabelecimento comercial;
– a escola em que estudei o curso primário; e
– o rio no qual quase me afoguei.
A casa. Em 1956, meu saudoso pai, Oscar Barboza Souto, saiu da fazenda do sogro — onde morou nos primeiros 12 anos de casamento com minha mãe, Alaide — e mudou-se para Rochedo. Nesse povoado, antes das núpcias em 1944, fora um dos pioneiros nas artes do garimpo.
A despeito da exígua cultura formal — na infância, frequentara apenas 3 meses de escola —, nessa nova vivência rochedense, foi nomeado cartorário (Tabelião do Registro Civil).
Em 1957, Oscar comprou do Elias Daige uma casa que, além de moradia, abrigava comércio decadente. Esse estabelecimento pertencera anteriormente ao comerciante e fazendeiro Issa Nahas.
Após a demissão do cargo de Tabelião, que exerceu durante cerca de 4 anos, Oscar se tornou Juiz de Paz; subsequentemente, vice-presidente do Partido Social Democrático e, em circunstâncias eventuais, presidente do partido. Nessa condição, exibia com orgulho a foto tirada na convenção do PSD, em Cuiabá, ao lado do Presidente Juscelino Kubstchek e do Senador Filinto Müller.
A família morou nessa casa durante mais de 20 anos. Nela, Oscar deu prosseguimento à criação dos filhos. O minguado comércio inicial foi transformado em um dos maiores estabelecimentos comerciais de Rochedo, com a venda de secos e molhados; tecidos, calçados, confecções e armarinhos; ferragens e outros utensílios domésticos; e até mesmo combustíveis, tendo montado o arremedo do primeiro posto de gasolina da cidade — essa caracterização se deve ao fato de que inicialmente era apenas uma bomba manual de processamento de combustível, que, com a chegada da energia, foi substituída por bomba elétrica.
A casa foi pois a fonte de inspiração e de recursos para que Oscar encaminhasse o processo educacional dos cinco filhos. Todos ingressaram em Faculdade. Aléssio obteve graduação em Ciências Militares na AMAN, em Resende-RJ, e graduação em Engenharia, bem como Mestrado no IME, na cidade do Rio de Janeiro — no Exército, ascendeu ao posto de General de Divisão; Angeliqui concluiu Pedagogia em Campo Grande e se tornou supervisora educacional; Aloizio realizou o curso de Advocacia em Dourados, e se tornou delegado de polícia estadual; Agton começou Pedagogia e Direito, e Edna começou Pedagogia, mas ambos não concluíram os cursos e se tornaram contabilistas.
A relevância dessa casa para Oscar, Alaide e seus filhos, é inequívoca e guarda reminiscências afetivas e profissionais inexcedíveis.
A escola. Primeiramente, cumpre destacar a arquitetura da fachada, com o ano de origem, 1934, grafado no alto da parede frontal. Fica a dúvida: será que se trata do ano em que foi concebido o projeto ou o ano de construção da edificação?
A resposta a essa indagação é irrelevante. Cumpre ressaltar a visão dos administradores daquela época. Eles cravaram em um local afastado das virtudes civilizacionais o marco, não raro ignorado, da prioridade e prevalência da Educação para a construção da grandeza humana.
Destarte, urge mencionar que vários jovens, que se tornaram engenheiros, administradores, advogados, militares de nível superior e professores, fizeram o antigo curso primário nessa saudosa escola. É incrível constatar que o ensino era de nível tal, que pessoas de origem humilde, de uma região com pouco contato com centros minimamente desenvolvidos, pudessem dar o pontapé inicial do processo educacional em estrutura tão modesta; algo que na atualidade, com tantos avanços sociais e econômicos, nem sempre é possível.
Dúvida não resta de que a imagem dessa velha escola continua na fronteira da consciência daqueles que tiveram a ventura de trafegar por seus bancos e, especialmente, aqueles que lograram êxito e conquistaram a condição de profissional de nível superior.
O rio. As águas ora quase claras ora barrentas, em decorrência do período chuvoso, do rio Aquidauana, exerceram impacto em corações e mentes. Aprender a nadar, atravessar o rio, saltar das pedras ou de frondosas árvores, brincar e até mesmo brigar em suas margens, enfim encarar os riscos inerentes, eram desafios que as crianças e os adolescentes precisavam ser capazes de enfrentar. E aqueles que fugiam da encrenca eram objeto de brincadeiras, de escárnio e de críticas mordazes dos demais — sofriam pois o que hoje se chama pejorativamente de “bullying”.
Jamais esquecerei que, na quadra dos 7 anos, papai ainda morava na fazenda do vovô e me colocou na pensão da Dª Isabel, em Rochedo, para estudar. Seguindo a tendência dominante, fui para a beira do rio e naturalmente aventurei-me a enfrentá-lo. Comecei a afogar e aí surgiu o anjo salvador: o filho do ‘seu’ Afonso de Araújo Passos, diretor da escola, mergulhou e me tirou da água.
Quando meu pai soube, prometeu-me uma surra memorável. Por óbvio, não precisava; deveria aprender a nadar, a partir da parte rasa e tranquila — mais tarde, tive êxito. O rio não era virtuoso nem traiçoeiro; os desavisados é que eram vítimas da falta de bom senso.
Levantar-se ao alvorecer, ir à escola na parte da manhã e, à tarde, após o futebol — cujo campo, desafortunadamente, algum administrador destruiu mais da metade para construção de edificações — passar uma boa hora nas águas não tão serenas do rio era fonte de fortalecimento físico e emocional.
Sonho bom. Essas lembranças — afora a satisfação de me conferir a modesta condição de cronista bissexto — me levam de volta ao passado, sensibilizam e emocionam. Então, permito-me asseverar o seguinte:
– na casa em que morei, contígua ao estabelecimento comercial, ainda criança, aprendi a relevância da família e do trabalho;
– na escola em que estudei o curso primário, tive a percepção do impacto do conhecimento na vida do ser humano; e
– no rio no qual quase me afoguei, aprendi a nadar e valorizar o mérito da superação do infortúnio.
Por isso, dividir esses sentimentos com minha esposa e nossas queridas trigêmeas envolveu-me em alegria e enlevo. Passados alguns anos de nossa visita, rememorar é sonhar o sonho bom, é viver agradavelmente cada momento inesquecível.
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