"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto, meu pai, antigo lavrador, garimpeiro, comerciante, tabelião e juiz de paz. In Memorian. |
A Marinha do Brasil desencadeia, periodicamente, uma expedição à Antártica, para a qual são convidados a participar, entre outros, integrantes das três Forças Armadas, do Parlamento, do poder Judiciário, do Ministério Público, do setor empresarial e da intelectualidade. O deslocamento é realizado com o apoio da Força Aérea Brasileira, que transporta os visitantes, a partir do Rio de Janeiro, em aeronave Hércules C-130.
O objetivo deste texto é apresentar uma espécie de diário da viagem à Antártica, realizada no período de 6 a 12 de novembro de 2009, da qual participei. A programação compreendeu as seguintes atividades:
– Deslocamento aéreo em voo da empresa TAM, de Brasília para o Rio de Janeiro;
– Deslocamento aéreo em aeronave C-130, do Rio de Janeiro para Pelotas-RS;
– Deslocamento de ônibus de Pelotas para Rio Grande-RS;
– Visita ao Museu Antártico, ao Museu Oceanográfico e a Estação de Apoio à Antártica (ESANTAR), todos em Rio Grande;
– Deslocamento de ônibus de Rio Grande para Pelotas;
– Deslocamento aéreo em aeronave C-130, de Pelotas para Punta Arenas, no sul do Chile;
– Primeira visita à Antártica – deslocamento aéreo em aeronave C-130, de Punta Arenas ao continente antártico; recepção na Base Aérea Presidente Eduardo Frei, do Chile; e visita a locais de interesse coletivo;
– Segunda visita à Antártica – deslocamento aéreo em aeronave C-130, de Punta Arenas ao continente antártico; visita às imediações das estações russa e chinesa e outros locais relevantes;
– Visita à Zona Franca de Punta Arenas e a uma 'pinguinheira' (região de pinguins);
– Deslocamento aéreo em aeronave C-130, de Punta Arenas para o Rio de Janeiro;
– Deslocamento aéreo em voo da empresa TAM, do Rio de Janeiro para Brasília; e
– Os respectivos pernoites, sendo um dia no hotel de trânsito de oficiais da Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro; um dia, no hotel Manta, na cidade de Pelotas; e quatro dias no hotel Rey Dom Felipe, em Punta Arenas.
6/Nov/2009 (sexta-feira)
Depois de ter sido voluntário durante quase dois anos, finalmente, chegou a oportunidade de participar de uma viagem à Antártica. Embarquei, em Brasília, no Air Bus da empresa aérea TAM. O avião decolou às 17:00 h e pousou no aeroporto do Galeão às 18:45 h.
Hospedei-me no hotel de trânsito de oficiais da Base Aérea do Galeão. Essa escolha se deveu à localização. O hotel fica a 10 minutos do local de concentração para o embarque, em direção a continente antártico, no dia seguinte.
Não há refeitório no hotel. Então, fui jantar no Restaurante Frutos do Mar – uma referência gastronômica da Ilha do Governador. Pedi robalo e arroz com brócolis. O prato foi satisfatório. Como não perguntei, me surpreendi com a quantidade: serve duas ou mais pessoas. Consumi a metade e pedi que preparassem o restante, que depois ofereci para o motorista que estava me apoiando.
No retorno ao hotel, assisti à parte final do Jornal Nacional e depois, durante quase uma hora, tentei adquirir pela Internet passagens aéreas para a viagem da família no final do ano. Não tive êxito. O site da empresa TAM é não amigável e o sistema Internet da operadora Vivo é de uma lentidão incrível.
Depois, redigi e enviei mensagens para as queridas Alessandra, Laura e Cecília.
7/Nov/2009 (sábado)
Acordei 05:45 h. Após a higiene matinal, fiz a fisioterapia caseira, por conta de uma epicondilite no cotovelo. A meta é aplicar gelo todos os dias, durante a viagem. Para isso, trouxe a forma de gelo. Foi providencial. O frigobar do hotel não tinha gelo.
Tomei café no Cassino de Oficiais, onde encontrei o tenente-coronel aviador Mendonça, comandante do 1º Esquadrão do 15º Grupo de Aviação (1º/15º GAV), de Campo Grande, e que iria como observador no voo antártico.
Fui para o terminal do Correio Aéreo Nacional, local de concentração para o voo da primeira etapa da viagem — Rio de Janeiro-Pelotas.
Na sala VIP, encontrei vários companheiros de jornada — Dr. Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, antigo Ministro do Superior Tribunal Militar; almirantes Ortiz, Guimarães e Barbosa; brigadeiros Waldeísio e Manhães; Prof. Dr. Roberto, Reitor da Universidade Federal de Roraima; economista André, representante da FINEP; Sra. Estefânia, assessora parlamentar, da Câmara dos Deputados; Sr. Francisco Amorim, escritor português radicado no Brasil; e Dr. Paulo Leite de Lacerda, da POUPEX. Além dessas personalidades fizeram parte dessa missão antártica cerca de 50 militares e pesquisadores de Universidades.
O Dr. Bierrenbach é sobrinho do Almirante de Esquadra Bierrenbach, também Ministro do Superior Tribunal Militar e que, no regime militar, se notabilizou por sua ação corretiva em relação a desvios e exageros de militares na repressão aos subversivos. É advogado, foi deputado estadual e federal, antes de se tornar Ministro. Ele é tio da advogada Sheila Bierrenbach, que atuou na defesa dos oficiais superiores do Exército, cujo processo corre na Justiça Militar e no qual eu participei, durante 3 anos, como juiz e membro do Conselho Especial de Justiça. O Sr. Bierrenbach me assegurou que conheceu o meu sogro, embaixador Cláudio Luiz, quando ele trabalhava com o Ministro Paulo Brossard. Ele acrescentou que tem muito apreço pessoal e profissional pelo Cláudio Luiz.
O Sr. Amorim tem 77 anos. Há 4 anos, ele participou, ao lado de um sobrinho e de um amigo, da travessia náutica Brasil-Namíbia, em um veleiro de 12 metros. Ele me assegurou que a viagem à Antártica é sua última aventura. É uma figura singular.
A Sra. Estefânia participou da viagem porque o Congresso Nacional seria representado por um senador e um deputado Federal, os quais, em face do adiamento da viagem, não puderam seguir.
Com um pequeno atraso — decorrente da falta de teto em Pelotas, que estava envolta em cerração — fomos chamados para a reunião de orientação e depois para o embarque. Na reunião, o coordenador da expedição, da Marinha, transmitiu dados gerais sobre as diversas etapas da missão, com ênfase para os procedimentos de chegada e saída no Chile, e os cuidados em território antártico. O comandante da aeronave mencionou os aspectos essenciais do voo e a Sra. Alice — uma antiga aeromoça, chegando perto dos 70 anos, que, voluntariamente, tem participado de todos os voos do Programa Antártico Brasileiro — complementou as informações, ressaltando o serviço de bordo. Enfim, embarcamos.
Ao entrar no Hércules C-130, da Força Aérea Brasileira, senti uma sensação curiosa ou estranha ou nostálgica — ou tudo isso junto. Afinal, quando estava na Brigada Paraquedista, saltei de paraquedas de C-130 umas duas dezenas de vezes; como mestre de saltos e responsável pela equipe, ou individualmente; da porta lateral ou da rampa traseira; em zonas de lançamento do Rio de Janeiro, de Minas e de São Paulo; sempre com enorme vibração e com uma especial energia, a rondar o coração e a mente. É um tempo que não volta e não se repete, mas cujas marcas estão indelevelmente embrenhadas na superfície e nas profundezas da alma.
Os bancos do C-130 são laterais e não há estofamento. O espaço é exíguo. As bagagens ficaram à vista, acima de nossas cabeças. O nível de ruído é bastante elevado, mesmo com os protetores de ouvido fornecidos pela tripulação. De minha posição, a visibilidade externa era nenhuma. Havia apenas um banheiro, improvisado no fundo do avião — o acesso a ele deveria ser feito em condições precaríssimas, porque seria preciso serpentear entre pernas e joelhos dos demais viajantes que quase se espremiam em espaço que, habitualmente, é destinado ao transporte de tropa militar ou de carga e, por isso, prescinde de qualquer conforto. Bem, a aventura antártica tem a contrapartida — cerca de horas e mais horas nessas condições. Quem quiser boa vida, deve colimar outras metas.
Depois de uma hora no ar, foi servido o lanche — sanduíche, suco, frutas e café com leite. É melhor do que aqueles servidos pelas empresas Gol e TAM
Já passava um tantinho das 13:15 h, quando chegamos em Pelotas. No aeroporto, o general Miotto, comandante da 8ª. Brigada de Infantaria Motorizada (8ª. Bda Inf Mtz), recepcionou a comitiva e, em especial, recebeu-me de forma bastante fidalga.
Recebemos a andaina, conjunto de casaco corta-vento com capuz, jardineira de nylon, bota com forro tipo Caribou, gorro com protetor de orelhas, luvas de goretex, máscara para neve e cachecol de lã, acondicionados em saco de lona. Certamente, ninguém passará frio na aventura polar.
O almoço foi na churrascaria Lobão. A carne estava excelente e o serviço satisfatório. No Rio Grande do Sul, o churrasco é quase tão bom quanto em Mato Grosso do Sul. O escritor Amorim, do alto de seus 77 anos, escolheu o vinho chileno Marques, da Casa Concha. Simplesmente, maravilhoso. No retorno do Chile, tentarei carregar alguns exemplares. Durante o almoço, a conversa foi boa. Afora revelar uma cultura ampla e irrestrita, o ministro Bierrenbach é um emérito contador de histórias e também de piadas. Deu para perceber que o Amorim é um aventureiro contumaz. Pela idade provecta, pode ser considerado uma referência. Não posso ter dor na coluna e no braço nem devo pensar que viajar de Hércules C-130, várias horas seguidas, seja desconfortável.
Saímos da churrascaria e fomos para a cidade de Rio Grande, onde visitamos o Museu Antártico, o Museu Oceanográfico Prof. Eliezer de C. Rios e a Estação de Apoio à Antártica (ESANTAR), pertencentes à Universidade Federal de Rio Grande.
As dependências do primeiro são uma réplica da Estação Comandante Ferraz — a base brasileira no continente gelado. Trata-se, pois, de um conjunto de contêineres que abrigam painéis com informações sobre a história, a fauna, a flora, a atmosfera, o subsolo e outros aspectos fundamentais da Antártica.
O Museu Oceanográfico, contíguo ao outro, é mais sofisticado e apresenta — além de painéis — objetos, réplicas de animais, peixes e outras facetas da Antártica. Ademais, na região dos fundos do imóvel, há instalações para recuperação de animais marinhos. Nas piscinas especiais, vimos um leão marinho e um pinguim. Filmei-os. Parecem dóceis.
Em outra região de Rio Grande, visitamos a ESANTAR, que abriga os materiais de esqui e patinação, roupas especiais e outros materiais que o pessoal da Marinha e os pesquisadores das Universidades utilizam na Estação Comandante Ferraz.
Ao anoitecer, com frio e chuva, retornamos para Pelotas e nos hospedamos no Hotel Manta. Entrei no apartamento, alguns minutos antes do Jornal Nacional, mas a TV não funcionou. Depois de um lenga-lenga que durou um pouco mais de cinquenta minutos, trouxeram uma TV nova. Decidi descer, sem tomar banho e fardado, para jantar no restaurante do hotel.
Em seguida, telefonei para a querida Isabel, cumprimentando-a pelo aniversário, que será amanhã; e também para ter notícias de nossas queridas filhas Alessandra, Cecília e Laura — pai coruja já sente saudade, algumas horas depois, sem vê-las.
Em minha imaginação, ocorrem indagações relevantes. O que significa ser mãe de três filhas maravilhosas? O que significa ensiná-las, mostrar-lhes os caminhos do mundo, agregar-lhes auto-estima? O que significa transmitir-lhes a idéia, a atitude e o conceito do amor a si mesmas, do amor à vida, do amor a uma missão terrena, do amor à luz que ilumina os outros, da generosidade que fomenta a busca do bem dos outros? O que significa ser referência para elas? Isso tudo vale a pena, tem valor?
Foi melhor cumprimentar Isabel hoje do que amanhã, dado que existia a possibilidade de, antes de oito horas, já estar no avião.
Fiz o download das atualizações do equipamento Huawei (em realidade um celular que se conecta ao notebook para emprego dedicado ao acesso à Internet). Essas atualizações visaram o acesso à rede global, a partir do exterior.
Aproveitando o longo tempo de recepção das atualizações, enviei mensagens para as queridas filhas. Não poderia ser diferente, depois de a Alessandra ter dito, por telefone, que adooorooou a mensagem que enviei, no dia anterior.
Antes de dormir, liguei a TV no canal 40 e assisti parcela do programa comandado pelo Wiliam Waack. O programa contou com a presença do embaixador Abdenur (há alguns anos cruzei com ele, onde? Em Paris? Em Londres? A rigor não me lembro), do filósofo Gianotti e de um cientista da USP. Os seguintes temas foram debatidos: a queda do muro de Berlim, a queda de outros muros, as repercussões sobre a atualidade e a infeliz tendência de integrantes de Governos sul-americanos, aí incluído o brasileiro, de pautarem suas ações pelo ideário vigente durante a Guerra Fria.
Embarque na aeronave Hércules C-130, em direção a Pelotas-RS. Base Aérea do Galeão – Rio de Janeiro – 7/Nov/2009. |
General Ribeiro Souto, escritor Amorim, economista André, ministro Bierrenbach e almirante Barbosa. Churrascaria Lobão – Pelotas-RS – 7/Nov/2009. |
Visita ao Museu Antártico – Rio Grande-RS - 7/Nov/2009 |
8/Nov/2009 (domingo, aniversário de Isabel)
Acordei antes de seis horas. A primeira atividade após a higiene matinal foi a fisioterapia com gelo. Tenho que persistir porque a epicondilite tem incomodado mais do que o habitual.
Nos vinte minutos da sessão de gelo, assisti a uma entrevista do João Ubaldo Ribeiro. Imperdível! Ele tratou do processo criativo, das correntes literárias que o influenciaram, de seu recente livro ‘O Albatroz ....’ e de sua recorrente desconexão geográfica e cronográfica — ele se perde em uma livraria, se for das grandes; e não consegue interpretar o significado temporal de seus cinquenta anos de produção literária.
O café da manhã do hotel pelotense é muito rico, mas eu comi de maneira frugal. É o que convém para o entra-e-sai do avião que me espera.
A decolagem ocorreu por volta de oito horas. Uma hora e meia depois, foi servido um lanche — biscoito, bolo, requeijão, polenguinho, manteiga e suco.
Fui à cabine do C-130. Naquele instante, estávamos passando sobre Montevidéu (qual era a altura do avião? A altura de cruzeiro seria 9.000 metros. Passamos sobre a capital uruguaia provavelmente a uns 6.000 a 7.000 metros). Foi uma escolha interessante! Tirei uma fotografia razoável da capital em que estive em 1998.
Lá estive por ocasião da visita dos integrantes do Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx) ao Cone Sul. À mente, vieram lembranças de Punta del Este e da Casa del Pueblo, do Carlos Paez Villaró, artista plástico, escultor, arquiteto, contador de histórias e amigo do Vinicius de Morais e do Pablo Neruda, integrantes da esquerda, que já defenderam o regime de Stalin— não se pode esquecer: o regime do abjeto ditador foi responsável pela morte de mais de 10 milhões de pessoas e pela tortura de outras tantas — por isso, do ponto de vista político-ideológico, o trio não merece meu respeito; contudo, enquanto escritores e artistas, eles fizeram história — dúvidas não há.
Conquanto não seja sofisticado, o posto de comando da aeronave impressiona qualquer leigo. Foi informado que estávamos a 22.000 pés (cerca de 7.000 metros) de altura, com a temperatura externa de 31º. C, abaixo de zero.
Ao retornar para o local dos passageiros, percebi que várias pessoas estavam de pé conversando. Achei que seria razoável ir ao banheiro aumentar a autonomia. Não foi fácil o deslocamento da parte da frente, onde me encontrava, até o destino, no fundo da aeronave. Não percebi que uma pesquisadora estava dormindo deitada em três bancos. Na tentativa de ultrapassar outras pessoas que estavam dormindo sentadas, pisei na dorminhoca, acordando-a. Claro, pedi mil desculpas — acrescentei "mil não, um milhão de desculpas!". Definitivamente, "a justiça e a vida não socorrem os que dormem".
E assim o tempo foi passando. Chegou a hora do almoço. Um dado interessante é que as autoridades, habitualmente, sentam-se à frente e, hierarquicamente, os passageiros se distribuem de tal sorte que os menos graduados se sentam ao fundo da aeronave. O almoço é preparado pela Sra. Alice e pela Ten Elaine (que, soube depois, foi aeromoça antes de se tornar oficial da Marinha), na parte da frente do compartimento de passageiros. A exiguidade de espaço é tal que há uma curiosa inversão hierárquica: os ministros, oficiais-generais e demais autoridades almoçam por último. Inicialmente, eles passam a bandeja com o almoço (e, quando for o caso, com o lanche) para a retaguarda, de tal sorte que os integrantes da base da pirâmide profissional começam a refeição primeiro, prosseguindo com aqueles da posição intermediária e, só depois de ajudar a servir a maioria, as autoridades começam sua refeição.
A Sra. Alice é uma figura extraordinária. Tem quase 70 anos, foi aeromoça na mocidade e, de alguma forma, se ligou à Marinha e, em especial ao programa antártico, na condição que deve tê-la empolgado tanto na juventude. Ela participou de mais de 60 voos à Antártica! Incluo-a no universo dos seres humanos exemplares — aqueles que espargem luz pelos caminhos da vida; que empurram a história para a vanguarda; que transmitem uma aura de grandeza, decência e, generosidade; e, mais do que tudo isso, interagem com seus semelhantes com alegria, bom humor, fidalguia e inteligência!
O almoço foi filé, massa (aquela que tem queijo em seu interior — como chama mesmo?), refrigerante e mousse de chocolate. Creio que foi satisfatório. Claro, colocar a bandeja no colo e degustar os alimentos, espremido pelos companheiros do lado e, sem poder esticar as pernas por causa daqueles que estão na outra fileira, são circunstâncias para serem lembradas.
Finalmente, passadas cerca de seis horas — nas condições de militares seguindo para o combate — chegamos a Punta Arenas, cidade de cerca de 120.000 habitantes, localizada a mais de 3000 km de Santiago, a capital chilena e em frente da Ilha da Terra do Fogo (território mais ao sul do Cone Sul e dividida entre Chile e Argentina).
Entre os procedimentos alfandegários, chamou a atenção a revista de toda a bagagem. A meta da fiscalização chilena é evitar a entrada de alimentos perecíveis, vegetais, animais e alimentos perecíveis.
Instalamo-nos no hotel Rey Dom Felipe, de arquitetura típica, curiosa e de bom gosto. Em seguida, deslocamo-nos para a Zona Franca de Punta Arenas —com lojas comerciais e um shopping de porte médio, com eletrônicos, perfumes e artigos correlatos com preços módicos, que variam de 50% a 80% daqueles praticados no Brasil. Fomos em dois outros shoppings, fora da Zona Franca, mais para acompanhar os companheiros — o reitor da Universidade Federal de Rondônia, os representantes da FINEP e da Câmara dos Deputados e dois oficiais superiores da Marinha. Em realidade, eu queria comprar uma lembrança para a Isabel, no dia de seu aniversário e lembranças para as meninas. Não consegui o que queria.
O jantar foi no restaurante do hotel Savoy. Não houve orientação prévia nem planejamento, mas parece que a maioria dos integrantes da expedição foi jantar nesse local — fui junto, claro. Peixe e vinho chileno prevaleceram em todos os pedidos. Escolhi salmão, já que houve o alerta de que o prato típico é muito forte e poderia originar reações indesejáveis na viagem do dia seguinte.
Deslocamento Pelotas-RS a Punta Arenas, no Chile Sobrevoo de Montevidéu – 8/Nov/2009 |
Cap Mari, assessora parlamentar Estefânia, Sra. Alice (≈ 70 voos à Antártica) Deslocamento Pelotas-RS a Punta Arenas, no Chile – 8/Nov/2009 |
9/Nov/09 (segunda-feira)
A alvorada foi às 5:50 h. Havia necessidade de um tempo maior para vestir a roupa, acrescida dos paramentos distribuídos pela Marinha para enfrentar o rigor do ambiente antártico. Então, tratei de colocar duas camisetas, parte inferior do pijama de malha, duas meias, sendo uma de futebol, a farda camuflada, um suéter de lã, a jardineira, a japona e a bota especial (que deve pesar uns quatro quilogramas — se não pesa tudo isso, parece). Ademais, separei, para usar depois, a luva, o cachecol, os óculos e o capuz.
Após o café da manhã, seguimos para o aeroporto. Às 09:54 h, decolamos de Punta Arenas em direção à Base Presidente Eduardo Frei, chilena, primeiro destino, no continente antártico. Fui consultado se aceitaria passar a noite na base brasileira — Estação Comandante Ferraz. Havia um risco: se as condições atmosféricas não permitissem o pouso do Hércules no dia seguinte, haveria a permanência lá por cerca de 6 dias e o retorno seria de navio, até Punta Arenas e daí até o Rio, em aeronave comercial, por conta de cada aventureiro. Achei que não havia argumento lógico que recomendasse minha adesão a essa mudança da programação. Então, preferi me incluir no grupo daqueles que iriam e voltariam no mesmo dia.
Finalmente, chegou o momento esperado. Entusiasmo e alegria reinaram nos momentos de espera. Mais do que alegria, constatava-se uma certa energização de expectativas, uma certa ansiedade, uma idéia de focalização do pensamento no que estava por acontecer — algo inédito, nem sequer antes sonhado. Para se ter consciência do que aconteceu na fase de planejamento da viagem, cerca de 2000 funcionários da operadora telefônica Oi participaram de uma gincana para a escolha dos dois representantes daquela empresa — tudo indica que houve um esforço monumental de parte dos vencedores da gincana para obter o direito de viajar. A representante da Câmara dos Deputados asseverou que se sentira muito honrada em participar da missão, em substituição a um Deputado Federal, que não pudera comparecer. O passar do tempo causou a aproximação das pessoas de tão diferentes origens acadêmicas e profissionais. Para isso, contribuíram as condições adversas do transporte; e a participação de todos, em particular, na questão da alimentação (com divisão de tarefas de apoio, com a socialização dos bônus etc.) Enfim, a dificuldade une, solidariza e torna as pessoas mais generosas e camaradas.
Às 9:50 horas, embarcamos no Hércules. A viagem transcorreu na normalidade. Os agasalhos se mostraram suficientes. O lanche estava reforçado — esfiha, biscoito, polenguinho, manteiga, geléia, chocolate e suco.
Soou a companhia, indicando que se deveria conectar os cintos de segurança porque a chegada ao continente alvo, distante, gelado e com animais diferentes e interessantes estava próxima. Dirigi-me à cabine de comando e pleiteei assistir ao pouso, bem atrás dos pilotos. Num primeiro momento, fiquei na dúvida se o que estava vendo eram nuvens ou era a própria Antártica. Em realidade, era um colchão denso, espesso de nuvens brancas. O piloto estava esperando a chegada do momento certo para descer, furar a camada de nuvens. Por informação da torre de controle, possivelmente chilena, ele sabia que o teto estava acima do nível, habitualmente, aceitável para pouso — que é cerca de 760 metros.
Notei um clima denso na cabine. Não era estresse. Era o direcionamento do foco das atenções, especialmente, dos dois pilotos, para o pouso — provavelmente, a mais difícil operação realizada pelos oficiais da Força Aérea Brasileira, com o avião Hércules. Adicionalmente, na cabine, havia outros dois pilotos — o comandante do 1º/15º GAV, de Campo Grande, e um capitão aviador negro, que estava participando da tripulação na condição de instruendo — dois mecânicos de vôo, o brigadeiro Waldeísio, o almirante Guimarães e eu próprio.
As nuvens foram gradualmente cedendo lugar à visão do continente branco. Dava para ver um pouco de água e, perpendicular à direção de voo, uma espécie de despenhadeiro de gelo e neve (enquanto despenhadeiro, parecido com o clif de Dover, no canal da Mancha, na chegada da Inglaterra). Foi um momento fantástico, quase mágico.
De tanto ouvir repórteres de televisão falar, gratuitamente, de emoção, sinto-me desinteressado da idéia da emoção porque esse pessoal, dela cogita, como estímulo aos telespectadores, quando não há justificativa para tanto.
Mas devo confidenciar que fui tomado de emoção, essa que preenche o íntimo, afaga a mente e enriquece a razão. Indescritível! Não conseguia distinguir a piso da paisagem alva; e a aeronave descia celeremente. De repente, percebi o que somente olhos experientes já teriam visto bem antes: as luzes com a luminosidade bem esmaecida, que balizam o local onde, sob a neve, há asfalto. Nesse estado de encantamento, percebi que o Hércules estava rolando na pista de pouso e a alvura da paisagem era quebrada pelas edificações esparsas da Base Presidente Fernando Frei, do Chile.
Desci para a fuselagem e, após a permissão da Sra. Alice, deixei a aeronave e recebi o impacto do vento frio, cortante. Afundava os pés na neve e tinha os olhos sensibilizados pelo impacto, pela magia e pelo deslumbramento de estar me deslocando no solo antártico.
O continente antártico tem 14.000 quilômetros quadrados. Tem, portanto, quase o dobro da área do Brasil. Sua temperatura mais baixa foi constatada pelos russos: – 89º C (menos 89 graus centígrados, quer dizer, abaixo de zero, enfatizo). No litoral, onde a água do mar tem um efeito moderador, a temperatura no inverno varia de – 40º C a – 15º (ressalto, ambas, abaixo de zero); e no verão a máxima é 15º C.
Por conta de uma grande atividade solar prevista para a o fim da década de 50, houve um grande esforço mundial no sentido de explorar o espaço e a Antártica. Por essa razão, o ano de 1958 foi denominado Ano Geofísico Internacional. Em 1959, a África do Sul, Argentina, Austrália, Bélgica, Chile, Estados Unidos, França, Japão, Nova Zelândia, Noruega, Reino Unido e a ex-União Soviética se reuniram e formalizaram o Tratado Antártico, cujas disposições principais são:
- uso da Antártica apenas para fins pacíficos;
- liberdade de pesquisa científica;
- proibição de qualquer atividade militar;
- congelamento de reivindicações territoriais;
- proibição de explosões nucleares;
- preservação do ecossistema antártico.
Em 1975, o Brasil aderiu ao Tratado, na condição de membro aderente. Em 1982, o Brasil iniciou o Programa Antártico.
O que estavam fazendo os brasileiros em 1959? O que estavam fazendo os políticos, diplomatas, militares e a sociedade em geral, que não se deram conta da mobilização mundial para o Tratado Antártico?
Calmamente, sorvendo o que a mente e razão podiam assimilar, fui me deslocando para as edificações da base chilena. Fomos recebidos pelos oficiais da nação amiga. Tive a impressão de que os brasileiros não estavam se portando com a elegância e fidalguia, que os manuais diplomáticos do pantanal recomendam.
O encarregado da coordenação fez as recomendações de praxe. Aqueles que se dispuseram a correr o risco de pernoitar na Estação Antártica Comandante Ferraz, deveriam ficar em condições de tomar o helicóptero, para seguir para o Navio Oceanográfico Ary Rongel. O deslocamento para a estação seria aéreo e marítimo e, no dia seguinte, o retorno seria aéreo, de helicóptero. Os demais (entre os quais eu me incluía) deveriam se deslocar para o interior e nas proximidades da base chilena. E algo surpreendente foi anunciado: houve uma evolução e não seria mais possível a ida ao “território brasileiro” por quem não se dispôs ao pernoite na Estação. Fiquei um pouco triste e lamentando ter tomado a decisão de não correr o risco de permanência até o dia 17 de novembro. Fiz uma sondagem para saber se não poderia haver mudança na minha decisão. Por ser general e para não constranger, fui discreto e cuidadoso na tentativa. Não tive êxito. Deveria, portanto, aproveitar ao máximo a estadia na base chilena.
Dispus-me a iniciar a caminhada. Inicialmente, fiquei observando o balé do transporte do helicóptero. Três de cada vez (militares ou pesquisadores) eram embarcados. O helicóptero os levava até o navio que estava na costa, a uns 20 minutos dali. Trazia três de volta, dentre aqueles que estavam deixando a Antártica, por já terem completado o tempo de permanência, e retornando ao Brasil, e assim por diante.
Vi três garotas de macacão alaranjado deixarem o helicóptero e caminharem de cabeça baixa. Pareciam um pouco tristes ou tensas. Nem uma coisa nem outra, talvez estivessem cansadas. Disse-lhes com a maior convicção que pude: “Bem-vindas de volta ao lar!”. Ambas levantaram a cabeça e deram o mais radiante dos sorrisos. Era a alegria e felicidade de quem venceu a mais difícil prova olímpica.
Fomos caminhar. Queria procurar pinguins, focas, skuas etc. De vez em quando parava, fazia o “giro do horizonte” nos 360º. de imensidão alva. Chegamos às imediações da base russa. Curiosamente, eles — russos ou soviéticos? — construíram uma igrejinha no alto de uma colina. Lamentei, não poder ir até lá. Provavelmente, perderia o avião. Fomos até o litoral, onde icebergs de vários tamanhos compunham magnificamente a paisagem. O navio brasileiro estava se aproximando da costa. Vimos a manobra de aproximação do helicóptero. Sobre icebergs menores, algumas focas descansavam. Que resistência a baixa temperatura! Várias aves skuas compunham o cenário de esparsa vida animal da região. Caminhamos até a cantina e o correio. Finalmente, os pinguins! De pelúcia! Comprei algumas camisetas e postais. Redigi o encaminhamento dos postais e os entreguei para a vendedora. Ela assegurou que chegaria ao Brasil, só não sabia quando. Curiosamente, as vendedoras são esposas dos oficiais da Força Aérea Chilena. Perguntei para a colega de viagem Estefânia se ela, como esposa, toparia servir na Antártica. Ela respondeu: “Que gelada!”.
Em seguida, retornamos para o pavilhão de comando da base chilena. Aproximadamente um quilômetro e meio, agora, de subida. De vez em quando, eu parava para fazer o giro do horizonte e para descansar. A bota de cerca de quatro quilogramas estava pesando bem mais.
A missão antártica já poderia ser considerada cumprida. Com emoção, com entusiasmo, com um pouco de orgulho por estar inserido no restrito universo de brasileiros que tem a ventura de usufruir dessa oportunidade. Embarcamos no Hércules com destino a Punta Arenas. Chegamos às 11:45 h e estávamos retornando às 16:30 h. Uma eternidade foi vivida em tão poucas horas.
O reitor da Universidade Federal de Rondônia, a representante da Câmara dos Deputados, dois oficiais superiores da Marinha e eu fomos jantar no restaurante Soritos. Aceitamos a sugestão do Adido Aeronáutico brasileiro no Chile, que levou os dois brigadeiros (oficiais-generais da Força Aérea) para o mesmo local. Pedi uma entrada tipicamente antártica — uma espécie de salada de krill — e cordeiro, uma especialidade, não sei se chilena ou de Punta Arenas. O vinho, um Gran Tarapaca estupendo.
Cheguei no hotel e tentei enviar mensagens para Isabel e para as meninas. Não consegui. A navegação na rede global estava lentíssima.
General Ribeiro Souto, ministro Bierrenbach, escritor Amorim, Sra. Alice, Sr. Lacerda. Hotel Rey Dom Felipe – Punta Arenas, Chile – 9/Nov/2009 |
Cabine da aeronave Hércules C-130 – Aproximação da pista de pouso na Antártica. Base Aérea Chilena Presidente Eduardo Frei – 9/Nov/2009. |
Primeira visita à Antártica. Pista de pouso da Base Aérea Chilena Presidente Eduardo Frei – 9/Nov/2009. |
Primeira visita à Antártica. Passeio na imensidão gelada – 9/Nov/2009. |
Primeira visita à Antártica. Dependências da Base Aérea Chilena Presidente Eduardo Frei – 9/Nov/2009. |
10/Nov/2009 (terça-feira)
Comecei o dia tentando navegar na rede global. A velocidade estava satisfatória. Consegui enviar as mensagens para as queridas Isabel e filhas.
O dia não poderia começar melhor. Foi confirmada a cogitação de que voltaríamos hoje ao continente branco com a perspectiva de ir à Estação Antártica Comandante Ferraz.
Então, seguimos para o aeroporto, embarcamos no Hércules e repetimos a operação de ontem. O pouso foi normal. Ao sair da aeronave, tive a impressão de que o solo estava mais alvo do que no dia anterior. Deve ter sido a nevasca que estava caindo, quando saímos ontem — parecia que estavam caindo bolos de neve. Mesmo a repetição da operação de desembarque teve um grande impacto. Estar nessa imensidão branca se insere no rol das vivências singulares na trajetória profissional e pessoal de qualquer um.
Não demorou muito para tomarmos conhecimento de que a janela de permanência seria menor do que a desejável. E o que isso significa? A impossibilidade de ir à estação brasileira. Não importa! Nada de lamentos ou insatisfação. Aproveitar o momento é preciso. Carpe Diem!
Logo, começou a chegada daqueles que foram ontem com a meta de dormir na estação brasileira. E os relatos foram sensacionais. Não é uma vivência minha! Transcrevo neste parágrafo o que ouvi. A ida para o Navio Oceanográfico Ary Rongel não pôde ser de helicóptero. Ocorreu de bote e aí os relatos transmitiram a percepção de que a aventura adquiriu conotações dramáticas — um bote de borracha inflável, com uma simplicidade franciscana, transportando 12 pessoas na água gelada, desviando-se aqui e ali dos icebergs pequenos e grandes. Depois, a extenuante subida pela escada de cordas do navio e o transporte no Ary Rongel. Em seguida, mais uma etapa de bote para chegar até a estação brasileira. Era emoção em estado puro, até porque os desembarques na estação ocorreram entre uma e quatro da manhã. Às seis da manhã, os visitantes já estavam de pé para um café da manhã frugal e para umas duas horas de visita às instalações e imediações do “território brasileiro". Os mais velhos dormiram no Navio Oceanográfico e, um pouco mais tarde, foram de helicóptero para a estação. O percurso estação brasileira-estação chilena, de volta, foi realizado de navio e de helicóptero. Que maratona! Enfim, os recém-chegados — entre outros, o ministro Bierrenbach, os almirantes Magalhães e Barbosa e o escritor Amorim — aparentavam ar de exaustão, sem contudo qualquer perda de entusiasmo.
Continuei o questionamento da decisão anterior de não enfrentar os riscos de uma permanência na estação brasileira até o dia 17 de novembro, retorno para Punta Arenas de navio e deslocamento para o Brasil de aeronave comercial, vale dizer, pelos próprios meios. Não adianta lamentar. A decisão foi tomada com a prevalência da razão sobre a emoção.
Em relação ao tempo passado na estação chilena, eu, os brigadeiros Manhães e Waldeísio, o reitor Roberto, a representante parlamentar Estefânia e o Paulo, oficial superior da Marinha, fizemos uma caminhada até um ponto dominante. A escolha se deveu à existência de uma espécie de torre de controle aéreo, que tinha um bom comandamento visual. Dali, foi possível visualizar o encontro das geleiras com o oceano; os icebergs enormes de coloração azulada; a estação coreana, que não era possível enxergar de outras posições. Ficamos um bom tempo nesse local. Primeiro, porque permitia uma fantástica observação da imensidão gelada e também porque houve a recomendação de que não deveríamos nos afastar da sede, pois, a qualquer momento, o tempo poderia mudar e poderia ser necessário decolar, às pressas, antes que uma impossibilidade meteorológica ocorresse e impedisse a conclusão daquela etapa da viagem.
O tempo passou e a hora do retorno chegou. A aeronave estava um pouco esvaziada da carga e de gente. Houve mais possibilidade de movimentação no compartimento de passageiros e acesso à instalação sanitária.
Seguindo a rotina do dia anterior, o lanche estava um pouco melhor. Afinal, às 17:00 h, ainda não tínhamos almoçado.
Tentei influir na escolha do local para o jantar. O Rômuldo, do Instituto Chico Mendes, o Roberto, reitor da UFR, o André, da FINEP, a Estefânia, da Câmara dos Deputados, o Amorim, escritor, constituem um grupo de fácil trato. Sugeri que fôssemos ao restaurante cuja edificação é uma das mais belas de Punta Arenas. Fica junto à praça que tem o monumento do Fernão Magalhães — um conjunto de esculturas fantástico: uma sereia e representações do gênio humano (um globo e, na minha interpretação, coisas que sugerem nosso intelecto), dois índios na parte inferior e o célebre navegador prevalecendo solitário na parte superior. Um dos índios tem o pé dourado e liso. Todo visitante que visita o monumento pega no pé do índio — reza a tradição quem fizer isso certamente retornará à Punta Arenas. Eu me rebelei e disse que só pegaria no rabo da sereia. Bem, mas restaurante, hotel e museu ocupam o belíssimo sobrado, que fotografei, na noite anterior, e cuja arquitetura denota influência francesa neoclássica. O restaurante leva o nome do português José Nogueira, que, no início do século passado, casou-se com Sara Brown. Essa família foi considerada a mais rica de sua época. Conta-se que a Sara construiu a casa e trouxe objetos da Inglaterra, França e Itália para compor a elegância que ela tinha concebido. A Sra. Alice, a quase septuagenária comissária de bordo, é muito bem-informada sobre as coisas de Punta Arenas. Ela me relatou que a Sara Brown doou um terreno de mais de 50.000 metros quadrados para abrigar o cemitério da cidade, com a condição de que, depois que ela cruzasse o portão monumental para ser sepultada, ninguém mais deveria ultrapassar aquele portão. Não cumpriram o seu desejo. O poder público construiu outra entrada e, até hoje, estão enterrando gente nesse cemitério.
O jantar foi um pouco complicado, porque o local era muito elegante e turistas em nossa condição não estão preocupados com isso, tanto na vestimenta quanto na atitude. O maître e os garçons se desdobraram para nos atender, sem revelar insatisfação. Brincamos muito porque éramos os únicos clientes. A comida e o serviço estavam compatíveis com as expectativas. Como regra geral, não pedimos a série habitual de entrada prato principal etc. A elegância, a música clássica e a qualidade não tiveram, pois, a contrapartida quantitativa.
Após o jantar, Paulo e Rocha Martins, os dois oficiais superiores da Marinha e dois representantes da empresa Oi se juntaram ao nosso grupo. Fomos dar uma passada no Cassino de Punta Arenas. Vi algo meio parecido com o que tinha visto em Las Vegas, em 1988 — luxúria, ostentação e vício, uma combinação venenosa. Eu, o Amorim, a Estefânia, o Roberto e o Paulo saímos do cassino e fomos para um dos andares superiores do prédio. A vista da cidade é deslumbrante. Sentamo-nos em uma área de estar elegante e jogamos conversa fora durante um bom tempo.
No retorno, consegui enviar mensagens para as queridas Cecília, Laura, Alessandra e Isabel. Fui dormir depois de meia-noite.
Segunda visita à Antártica. Um momento de alívio após extensa caminhada – 10/Nov/2009. |
Segunda visita à Antártica – Experiência singular e fascinante. Único meio de transporte no continente – 10/Nov/2009. |
11/Nov/2009 (quarta-feira)
Após o café, fui à Zona Franca de Punta Arenas. Examinei a filmadora DVD-650 e fiquei com a impressão de que era inferior à DVD-505. Então, preferi não comprar e, na volta ao Brasil, tentar a recuperação da que já tenho. Encontrei uma loja Sony. Examinei o notebook de 600 gramas. Acho que não tenho necessidade de algo assim. O Acer Aspire One que tenho satisfaz completamente. Então, só tinha uma finalidade: ostentação. Ainda é tempo de desistir.
Tomei um táxi e fui para o centro da cidade. Deu uma volta na praça que tem a estátua do Fernão Magalhães. Fui à loja da operadora de celulares Claro para verificar se era possível aproveitar no Brasil, o i-Phone pré-pago, aqui comprado. Disseram que não era possível. O celular é vendido bloqueado, mas que na Zona Franca havia celular desbloqueado.
Começou a chover e ainda assim, voltei à praça, fotografei o monumento e, também, vários prédios com arquitetura antiga. Um desses prédios é chamado Casa de Espanha e tem um restaurante. Para não me molhar muito, resolvi almoçar comida espanhola. Não foi uma boa escolha.
No caminho do hotel, encontrei o Roberto e o André. Eles me convidaram para voltar à Zona Franca. Encontrei o celular desbloqueado. É um Wi-Fi, arremedo de i-Phone, mas é interessante e decidi comprá-lo.
Chegamos de volta no hotel, a tempo de participar do passeio na ‘pinguinheira’. Ver pinguins, fotografá-los, filmá-los era fundamental. A promessa para as meninas deveria ser cumprida. Deslocamo-nos — um grupo de mais de 15 pessoas — de micro-ônibus. Levamos uma hora até chegar na terra dos pinguins. No meio do trajeto começou a chover. Como começou a chover, o motorista chileno parou o veículo e alertou que teríamos que andar a pé uns quarenta minutos. Tínhamos a opção de abortar a missão e retornar. Todos preferiram enfrentar o mau tempo. Eu estava em enorme desvantagem, pois não estava com o blusão impermeável e com proteção impermeável para a cabeça — desavisadamente, fui com jaqueta de couro. Ao desembarcar e receber a orientação requerida, constatei que havia uma vendinha de lembranças e uma lanchonete com abrigo razoável para aquelas condições meteorológicas. Decidi partir, caminhar à frente do grupo, praticando quase marcha atlética — garoava mais do que chovia e fazia muito frio. Os chilenos foram profissionais na preparação do percurso. Havia placas orientadoras, balizas de cordas e piso regular de tábuas perpendiculares ao sentido do percurso. Depois de uns vinte minutos de caminhada, encontrei os primeiros pinguins. Fotografei-os com dificuldade. A câmera estava molhando. Após mais uns cinco ou dez minutos, cheguei bem próximo ao mar (estreito de Magalhães). Aí tinha umas três ou quatro dezenas de pinguins. Só foi possível observá-los, admirá-los, um pouquinho de tempo; mas tirei mais algumas fotos e filmei-os. Fundamental era retornar para o abrigo. Ao chegar, procurei secar minimamente a cabeça e a jaqueta e, incontinenti, pedi um chocolate quente. Era a forma de recuperar o aquecimento necessário.
Ao retornar, minha opção foi jantar no restaurante do hotel. Acompanhei o ministro Bierrenbach, o Amorim e o Rômulo. Pedi carré de cordeiro. Depois, fui arrumar a mala, enviar mensagens para as queridas Isabel, Alessandra, Laura e Cecília.
Visita à 'pinguinheira' – Pinguins dóceis e brincalhões – 11/Nov/2009. |
Palácio Sara Brown (Hotel homônimo e restaurante José Nogueira). Punta Arenas, Chile – 10/Nov/2009. |
Monumento Fernão Magalhães, com este navegador, a sereia e dois índios. A obra sugere a representação do gênio humano. Punta Arenas, Chile – 11/Nov/2009. |
12 Nov 2009 (quinta-feira)
O café da manhã foi às 05:30 h. Uma certa euforia coletiva confrontava a noite mal dormida. Era a alegria do retorno. Portar duas malas, a andaina e a pasta era parte do enfrentamento de minha epicondilite.
No aeroporto, comprei um pinguim de cobre para Isabel e o livro As casas do Neruda para a sogra Maria Helena (que, afora já ter morado no Chile, é leitora compulsiva, amparada pela condição de antiga professora de artes da UnB). Na contracapa do livro era mencionado que visitar suas casas significava mergulhar em sua poesia. Na conversa de espera do embarque, mencionei para os integrantes de uma rodinha, o livro do Neruda, sua amizade com o Villaró e o Vinicius. Um funcionário da Poupex, cujo nome a memória esqueceu, disse que visitou a Casa del Pueblo e conversou com o Villaró. Este relatou-lhe que seu filho estava entre os passageiros do avião que, no passado, caíra nos Andes — trata-se do caso em que os sobreviventes se alimentaram de carne do colega que morreu. As buscas já tinham sido encerradas. O Villaró estava em Paris e foi a uma vidente. Essa asseverou que ainda havia sobreviventes. Então, o Villaró valendo-se de seu prestígio e do irmão que fora Ministro das Relações Exteriores do Uruguai, conseguiu a retomada das buscas. Dessa forma, os sobreviventes foram salvos. Essa estória é verdadeira?
{Na releitura deste diário, uns 12 anos depois de sua elaboração, vi o filme sobre a tragédia com o avião nos Andes e li notícias correlatas. À exceção da vidente, que não consegui confirmar, tudo o mais é verdadeiro. De fato, o filho de Villaró estava no avião. Então, o prestígio do artista pai contribuiu para que os sobreviventes fossem salvos!}
O embarque, as longas horas no avião, entre Punta Arenas e Pelotas, com massa no almoço, a entrega da andaina em Pelotas, ... essas atividades todas foram similares à vinda. O tempo de voo foi reduzido em cerca de cinquenta minutos por causa de um providencial vento de cauda. A destacar, a força, energia e determinação dos septuagenários Bierrenbach e Amorim e da quase septuagenária Alice. Cada um, à sua maneira, em maior ou menor escala — quer dizer, os três foram, são e serão referências para todos que com eles conviveram na aventura antártica.
No trecho Pelotas ao Rio de Janeiro, o calor brasileiro foi o grande diferencial. Na chegada, as despedidas, no meu caso, rápidas, pois, dispunha de pouco tempo para tomar o vôo TAM JJ-3030 para Brasília. Ainda assim, pude testemunhar muita alegria, emoção, euforia e deslumbramento dos familiares que estavam recepcionando aqueles que passaram mais de um ano na Antártica. Vi pessoas, fora do círculo de familiares e amigos, chorando pela cena cinematográfica que presenciavam. Era um caso típico de a vida imitando a arte.
Meu voo estava previsto para o dia seguinte, sexta-feira, às 07:00 horas. Consegui antecipar para hoje, às 20:30 h. Foi um sufoco. Afinal, desembarquei do Hércules por volta de 19:45 h. O acaso me ajudou. O voo da TAM se atrasou e a decolagem foi 21:45 h. Meia noite e meia estava abraçando Isabel. A volta ao lar é algo maravilhoso depois de uma aventura como essa da Antártica.
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{ Para observar, queira clicar no centro da figura. }