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"O lavrador perspicaz conhece o caminho do arado." Homenagem a Oscar Barboza Souto, antigo lavrador, garimpeiro, comerciante, tabelião e juiz de paz. In Memoriam. |
Em 1987, após o término do mestrado, fui transferido para Brasília. Ao chegar na capital federal, tive a ventura de reencontrar e interagir com o amigo Gottfried Bohlen, companheiro de graduação, em Material Bélico, na AMAN.
Preliminarmente, convém ressaltar que, antes da Segunda Guerra Mundial, a parentalha do Bohlen — com ênfase para seu próprio pai — era dona de significativo montante de riquezas minerais da Silésia, na Alemanha. Anteriormente, essa riqueza mineral (minério de ferro, carvão, sal-gema, potássio e outros) contribuiu para a industrialização e urbanização da Alta Silésia, tornando-a um dos maiores centros industriais do país.
Com a ascensão e a prevalência de Hitler nos destinos da Alemanha, o governo estatizou as empresas proprietárias que prevaleciam na região, com ínfimas indenizações; e, por essa razão, antes do início da guerra, tendo perdido expressiva parcela de seu patrimônio, o pai do Bohlen reuniu a família e se mudou para o Brasil.
O Bohlen era um personagem diferenciado, singular, único — sempre foi muito sério e pouco dado às tradicionais brincadeiras que eram comuns entre os colegas, no âmbito acadêmico. Ademais, sua seriedade se dava também nas questões de interação com o público feminino.
Certa vez, o Bohlen confidenciou que seu nome era Gottfried Gustav Meinz Heinler Bohlen. Com frequência, ao escrever ou falar, as pessoas erravam parcial ou integralmente seu nome; então, antes do ingresso na AMAN, com autorização judicial, ele conseguiu a simplificação do nome para Gottfried Bohlen. O Tarnowski, nosso brilhante colega, e o mais brincalhão dentre todos, declarava:
— Você não está falando a verdade. A rigor, seu nome é: Gottfried Fritz Franz Adolf Gustav Meinz Heinler Beckenbauer Steinhagger Bohlen.
O Bohlen era loiro e nessa hora ficava avermelhado e resplandecia indignação. Em um determinado dia, outro companheiro de apartamento, dado a travessuras, afixou a imagem de uma moça despida, da revista Playboy, na face interna da porta do armário do Bohlen. Na hora de dormir que, para seu rigor germânico, era às 21h30, ele abriu o armário e realizou a habitual oração silenciosa; quando levantou a cabeça, viu a imagem da moçoila superpondo seu sagrado crucifixo. A qualquer custo, queria saber quem fora o autor da façanha; claro, todos se aquietaram e testemunharam sua ação de rasgar a imagem, em estado quase possesso e reclamando de forma efusiva.
No segundo ano da AMAN, o Bohlen teve um acidente e fraturou o perônio da perna esquerda. No processo de recuperação, as duas pontas do osso fraturado calcificaram-se superpostas, o que causava dor frequente nos esforços despendidos na educação física, ao longo dos anos seguintes, até o término da graduação. Depois que se tornou oficial e saiu da AMAN, o Bohlen fez uma cirurgia corretiva com sucesso e conseguiu inclusive fazer o curso de paraquedismo civil, o que seria uma impossibilidade se não tivesse havido a correção total do perônio.
Cumpre esclarecer que, após a graduação, o Bohlen encarnou outro aspecto de seu perfil multifacetado: tornou-se o que se pode considerar um mulherengo inveterado. Inicialmente, servindo na própria AMAN, como instrutor, ele já casado, envolveu-se afetivamente e, de forma pública, com uma funcionária de sua seção. Por essa razão, foi transferido para outra organização militar, sob a alegação de que seu comportamento se constituíra em mau exemplo para os alunos — os cadetes da Academia. Posteriormente, ele se mudou para a capital federal, e se envolveu com moça de Brasília, simultaneamente, aos envolvimentos com moças de Resende e de São Paulo.
Uma indagação pertinente: eu deveria estar relatando o que pode ter sido resultado de confidências do amigo Bohlen, especialmente, por que ele não se encontra mais entre nós? Decidi fazê-lo, afinal grandes personagens da história — filósofos, estadistas e até religiosos — tiveram, em sua evolução, passagens contrárias aos padrões estabelecidos. E isso não obscurece a grandeza e a complexidade de cada um deles.
Aqui em Brasília, o Bohlen estava se preparando para o concurso da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e eu manifestei a intenção de também tentar o concurso. Como minhas duas primeiras tentativas de servir em Campo Grande, para permanecer nas proximidades de meus pais e irmãos, foram frustradas, tinha uma nova possibilidade: mais à frente, poderia chefiar a Comissão Regional de Obras/9ª. RM (CRO/9), localizada na capital sul-mato-grossense. Ora, o curso de pós-graduação militar na ECEME era requisito desejável e indicador relevante para que a escolha da organização militar a ser comandada fosse acolhida pelos escalões superiores. Para isso, era preciso estudar muito, inicialmente fazendo, à distância, o curso preparatório preconizado (chamado Curso Preparatório da ECEME ou CPrep/ECEME), cujos objetivos compreendem a formulação de soluções para problemas que envolvam aspectos da geografia, da história, da geopolítica e da estratégia do Brasil e do mundo, à luz da análise dos principais problemas brasileiros das expressões do Poder Nacional.
Ao saber disso, o Bohlen tentou a todo custo me incentivar; e, mais do que isso, ele providenciou a minha matrícula no C Prep/ECEME, bem como a inscrição no concurso. Como eu tinha duas funções que demandavam muito tempo e esforço, talvez, se não fosse o Bohlen, eu não teria feito a matrícula no Curso Preparatório nem a inscrição para a prova do concurso. O teste do C Prep/ECEME foi agendado para uma quarta-feira de cinza (ou, dado uma falha de memória, para o dia seguinte, quinta-feira), então eu avisei ao Bohlen que não faria o teste porque teria que viajar na Semana Santa para Campo Grande-MS, compromisso assumido com a família da querência, no início do ano; dessa forma, eu não teria como me preparar devidamente. Então, o Bohlen informou que, normalmente, o teste do C Prep/ECEME era a prova do concurso do ano anterior, que era pública; e ele tinha a prova e uma solução, que me entregaria. Dessa forma, não pude recusar e acabei por fazer o teste com sucesso. Quis o destino que, após término do curso preparatório, eu fosse aprovado na prova do concurso para a ECEME e, lamentavelmente, o Bohlen não atingisse sucesso.
Antes de seguir para a ECEME, tivemos um curioso e esclarecedor diálogo.
— Meu caro Ribeiro Souto, aceitei um convite para retornar para Resende. Pretendo voltar para junto de meu casal de filhos. Para apoiá-los, vou solucionar meus desajustes afetivos. Vou constituir uma nova família.
— Parabéns pela decisão, Bohlen! Meu velho pai Oscar costumava afirmar que o homem que não tem uma família, e não se dedica por inteiro a ela, não está em condições de viver de forma virtuosa.
— Decidi refazer a família com a Cristie, de quem já lhe falei. Nossas idades são compatíveis, ela é tranquila no trato e bem resolvida na questão profissional; ademais ela também tem um casal de filhos, o que contribui para o equilíbrio da interação.
— Avante, meu amigo e que você tenha muito sucesso nessa correção de rumos!
Depois disso, ele se transferiu para Resende e cumpriu o compromisso de se ajustar afetivamente e dedicar-se à nova família de acordo com padrões de correção esperados. Como filho de alemão com costumes rígidos, uma vez por semana, ele ia à agência de Correios postar correspondência para os parentes na Alemanha. Desafortunadamente, o ex-marido da gerente da agência de Correios espionava sua antiga esposa; e, ao perceber essa visita frequente, ele suspeitou que havia algo entre o Bohlen e sua ex-mulher. Isso o levou a cometer o assassinato do Bohlen — uma tragédia resultante do egoísmo e do ciúme doentio; enfim, de uma personalidade disforme.
Relato essas questões atinentes a esse companheiro de Material Bélico dos tempos acadêmicos, de forma detalhada, por três razões.
Em primeiro lugar, porque eu não saberia afirmar se, sem o apoio que ele me propiciou, eu cursaria a ECEME e teria a evolução profissional subsequente: chefia da Comissão Regional de Obras/11ª. RM (CRO/11) [1], a principal comissão de obras do Exército; nomeação para a função de Adido Militar de Defesa no Irã; promoção a general de brigada e, depois, a general de divisão; e o exercício das chefias do Campo de Provas da Marambaia (CPrM), do Centro de Avaliações do Exército (CAEx) e do Centro Tecnológico do Exército (CTEx) [2]. A rigor, foi uma evolução normal para os militares da amostra de universo a que pertenço, porém para alguém oriundo das proximidades de Rochedo, às margens do rio Aquidauana, nas fímbrias do pantanal sul-mato-grossense, minha trajetória foi inequivocamente surpreendente. Então, que este relato seja minha homenagem de eterno agradecimento ao amigo Bohlen.
A despeito do fim imerecido e trágico, é imperioso ressaltar a qualificação do Bohlen para superar as adversidades e as limitações resultantes da condição humana, como atestam as seguintes ações: a simplificação do nome, a reconquista das possibilidades atléticas, o apoio para um amigo no prosseguimento bem-sucedido de seu futuro, a tentativa de solucionar os desajustes afetivos e a intenção de apoiar os filhos.
Por último e igualmente relevante, devo enfatizar a percepção de que a faculdade de pensar permite ao ser humano:
– agir sob o manto da imaginação e do fascínio;
– inserir-se no contexto de comédia e de tragédia;
– colocar-se diante da possibilidade de transformar a vida — eventualmente, apoiada em vícios — em senda virtuosa; e
– permear sua existência com vitórias ou derrotas e, às vezes, finalizá-la com catástrofe.
NOTAS
Acrescento alguns aspectos atinentes ao exercício das chefias da CRO/11, em Brasília, e do CTEx, no Rio de Janeiro, para enfatizar a surpreendente evolução profissional de engenheiro — e primeiro concludente de curso superior da família —, oriundo lá das bandas de Rochedo, no atual Mato Grosso do Sul.
[1] Comissão Regional de Obras/11ª. RM (CRO/11)
Na CRO/11, durante cerca de dois anos de minha chefia, foi realizado um conjunto expressivo de obras:
– construção de 164 casas para oficiais e subtenentes/sargentos no Setor Militar Urbano (SMU), em Brasília;
– construção de 2 prédios residenciais para oficiais solteiros no SMU;
– construção de 400 casas para militares e servidores civis de baixa renda em Samambaia, em Brasília;
– construção do pavilhão principal do Hospital Geral de Brasília (HGeB) — agora, Hospital Militar de Área de Brasília (HMAB);
– construção de pavilhão no Colégio Militar de Brasília;
– construção de pavilhão no Centro de Instrução de Guerra Eletrônica, em Brasília; e
– cerca de 50 obras de restauração de pequeno e de médio porte em aquartelamentos de Brasília.
Ademais, houve também obras de construção e de restauração em quartéis de Goiânia-GO, Luziânia-GO, Palmas-TO e Uberlândia-MG.
[2] Centro Tecnológico do Exército (CTEx)
No CTEx, tive a oportunidade de chefiar 162 engenheiros, sendo 105 oficiais engenheiros militares formados no Instituto Militar de Engenharia (IME) e os demais civis, engenheiros admitidos no Exército mediante concurso. Do total de engenheiros, mais de 70 possuíam curso de mestrado e mais de 40 possuíam curso de doutorado.
Dentre as dezenas de projetos de pesquisa, desenvolvimento e fabricação, é imperioso destacar os seguintes produtos resultantes do trabalho coletivo de extraordinárias equipes daquela valorosa organização:
– Radar SABER M-60 (Sistema de Acompanhamento de alvos aéreos Baseado na Emissão de Radiofrequência – M-60) [*];
– Simulador SHEFE (Simulador de treinamento de piloto de Helicóptero) [*];
– Sistema REMAX (Plataforma da metralhadora .50 para veículos blindados sobre rodas) [*];
– Sistema MAGE (Medidas de Apoio à Guerra Eletrônica) [*];
– Sistema MTO (Módulo de Telemática Operacional) [*];
– Simulador NÃO-COM (Simulador computacional para treinamento prático do emprego de Guerra Eletrônica) [*];
– Sistema C2 Cmb (Sistema para Comando e Controle automatizado, para Brigada);
– Viatura Chivunk (com estrutura em aço tubular e suspensão independente nas 4 rodas);
– Viatura Gaúcho (também com estrutura em aço tubular, desenvolvida e produzida em parceria com equipe do Exército Argentino);
– Viatura VESPA-01 (Viatura Especial de Patrulhamento);
– VANT VT-15 (Veículo Aéreo Não Tripulado – VT-15) – após a conclusão do protótipo, por decisão de escalão superior, não teve prosseguimento;
– Simulador TIRO Pst (Simulador para Tiro de Pistola);
– Sistema ALAC (Arma Leve AntiCarro, para disparo do ombro do atirador);
– Míssil MSS 1.2 (Míssil Superfície-Superfície 1.2 AntiCarro);
– Transceptor Mallet (Rádio Transceptor TRC VHF Mallet);
– Munição PRPA (Munição Pré-Raiada com Propulsão Adicional);
– Materiais de Carbono (Produção de piche, grafite, fibra e nanomaterial de Carbono a partir de resíduos de petróleo);
– LABMÓVEL QB (Laboratório Móvel de Identificação de Agentes Químicos e Biológicos para Defesa QBRN); e
– Morteiros 60 mm, 81 mm e 120 mm (existente a décadas no Exército Brasileiro, porém adquiridos de empresas estrangeiras).
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[*] Esses seis artefatos bélicos (SABER M-60, Simulador SHEFE, Sistema REMAX, Sistema MAGE, Sistema MTO e Simulador NÃO-COM), entregues para o Exército Brasileiro, jamais tinham sido pesquisados, desenvolvidos e produzidos no Hemisfério Sul — no Hemisfério Sul, ressalto com ênfase — com recursos humanos e empresas nacionais e com capital majoritariamente nacional.